Na noite deste domingo, 2, iniciada a apuração dos votos, Jair Bolsonaro largou na frente de Luis Inácio Lula da Silva e à frente de Lula permaneceu à medida que a apuração engrenava. Apreensão. Mas…
“Tudo bem”, dissemos, nós, do sempre triunfal lado de cá, crentes em três fatores explicativos para aquela estranha sensação nos ossos: quando a noite ainda era uma criança, os estados mais avançados na apuração eram bolsonaristas, como Mato Grosso do Sul e Distrito Federal; engatinhava, ainda, a apuração no Nordeste vermelho; nos demais estados supostamente lulistas ou divididos, a explicação era que os votos do interior, o interior “conservador”, estavam chegando antes dos votos das regiões metropolitanas, menos reacionárias, por mais que isto não passasse apenas de uma suposição.
Ignoramos solenemente, porém, e só para variar um pouco, o que estava debaixo dos nossos olhos: seja nos estados bolsonaristas, seja no Nordeste vermelho, seja nos estados lulistas ou divididos, em praticamente todos eles Bolsonaro aparecia desde o início da apuração acima da margem de erro dos índices apontados pelas projeções da véspera eleitoral. Na maioria dos estados, muito acima da margem de erro.
A explicação do voto do interior chegando primeiro poderia se justificar se fosse o caso de Bolsonaro “surpreendendo”, lá pelo meio da apuração, em um, ou dois, ou três estados. Em todos, não. Ignoramos isso também.
Aos poucos, a esperança da vitória em primeiro turno foi cedendo lugar a um melancólico “vai virar”. De fato, Lula terminou a apuração à frente de Bolsonaro, mas a vantagem de 14 pontos percentuais, que parecia consolidada nas pesquisas das últimas quatro semanas, despencou para cinco.
No geral, onde as projeções indicavam vitória de Bolsonaro, Bolsonaro ganhou por mais do que o previsto. Onde as pesquisas indicavam vitória de Lula, Lula ganhou por menos, quando não perdeu.
Em São Paulo, as projeções indicavam vitória de Lula com 48%, contra 39% de Bolsonaro. O resultado foi Bolsonaro com 47% e Lula com 40%. Em Minas Gerais, as pesquisas davam até 21 pontos de vantagem para Lula. O resultado foi uma diferença de apenas cinco pontos: 48% para Lula, 43% para Bolsonaro. Em Pernambuco, onde há sete milhões de eleitores, as pesquisas indicavam vitória de Lula sobre Bolsonaro com 69% a 23% dos votos válidos, respectivamente. Apurados os votos, a vitória foi de 65% a 30%.
Nos estados supostamente divididos, deu Bolsonaro. No Rio Grande do Sul, por exemplo, as pesquisas indicavam empate técnico, com Lula numericamente à frente. O resultado foi Bolsonaro com 48% dos votos e Lula com 42%.
Vamos para o segundo turno da presidencial carregando nas costas uma derrota descomunal nas eleições gerais, com o PL tendo eleito uma centena de deputados federais -sem contar as outras forças ditas “conservadoras”, como o União e o PP – e candidatos do campo democrático ao Senado dados como muito provavelmente eleitos, como Olivio Dutra e Marcio França, sendo derrotados pelo general Hamilton Mourão e pelo astronauta Marcos Pontes. São apenas dois dos vários ex-ministros de Bolsonaro eleitos para o Senado.
O general Eduardo Pazuello teve mais de 200 mil votos para a Câmara no Rio de Janeiro. No Rio, Gabriel Monteiro elegeu o pais e a irmã. Um jovem agitador bolsonarista de Minas Gerais foi o deputado federal mais votado do país, com nada menos de 1,5 milhão de votos. Dos 10 deputados federais mais votados em todo o país, apenas dois são do campo democrático: Guilherme Boulos e – vá lá – Tabata Amaral.
Uma falange de governadores bolsonaristas raiz ou bolsonaristas nutella foram eleitos em primeiro turno. Outros devem ser eleitos no segundo.
Vamos para o segundo turno com o bolsofascismo demonstrando uma força impressionante não mais nas ruas, como no 7 de setembro, mas agora nas urnas. Os ratos do Centrão, do Ministério Público, das Forças Armadas que já davam sinais de abandonar o seu barco a essa altura já se detêm e viram as fuças para trás.
Vamos para o segundo turno contando com o espólio de Ciro Gomes, que na noite deste domingo se disse “profundamente preocupado com o que está assistindo no Brasil”, pedindo, sabe-se lá a quem, “mais algumas horas para achar o melhor caminho de melhor servir à nação brasileira”, após quatro anos de tempo suficiente para rever seu comportamento diante da escalada do fascismo.
Vamos para o segundo turno contando com o espólio de Simone Tebet, que na noite deste domingo disse que irá avaliar não apenas “a candidatura majoritária” da eleição presidencial, mas também o recado geral das urnas, “em cada estado, cada voto”.
Vamos para o segundo turno contando com a rejeição a Jair Bolsonaro, apontada pelas pesquisas e seus oráculos como “proibitiva” para a recondução de Bolsonaro ao cargo.
As pesquisas…
A ilusão que neste domingo levamos apenas um par de horas para perder, ou seja, a dos votos do Nordeste e das capitais chegando para nos redimir, esta ilusão não terá exatamente consequências para além do gosto de guarda-chuva na boca nesta segunda-feira, 3, e da constatação ácida, implacável, de que nosso país está muito mais envenenado do que chegamos a supor; a constatação de que o Brasil, nesta segunda, amanheceu mais fascista, não menos. Ou melhor: revelou-se. A mídia já escolheu um eufemismo para dar a notícia: “conservadorismo estrutural”.
Ao contrário das ilusões inofensivas, outras cobram um preço alto, como deixar Bolsonaro “sangrar” até as eleições, a fim de caminharmos para a vitória certa nas urnas; na mesma linha, deixar Bolsonaro cometer crimes, impune, para não “desestabilizar” o país; preferir enfrentar o fascismo no segundo turno, como fez a campanha de Haddad em São Paulo, com resultado desastroso; tentar vencer a direita fazendo-se parecer com ela, como tentou Freixo no Rio de Janeiro, com o resultado de Claudio Castro atropelando em primeiro turno, com quase 60% dos votos, como quem diz: “não aceite imitações”.
Botar a viola no saco, porém, nunca foi uma opção. Não será agora. Somos hoje mil pedaços, sim. Lula, porém, parte de 48,43% dos votos válidos, e sua eleição continua sendo nossa réstia de esperança à mão para tentar frear a Grande Marcha Para Trás em que meteram este país. Apenas para tentar freá-la. Revertê-la, pelo visto, será trabalho geracional.
Resta reconhecer a imensa derrota geral, juntar os caquinhos, lamber as feridas, erguer a cabeça, arranjar ânimo e seguir em frente. Mas, por favor, chega de ilusões. Iludir-se e iludir sobre a força do inimigo nunca foi vertente para a vitória. Não sei vocês, mas eu detesto ficar apenas detestando a ideia de estar no lugar de quem venceu.