Houve um tempo em que os setores mais responsáveis da imprensa não deixavam passar as mais gritantes contradições – pelo menos as mais gritantes, pelo menos aquelas que não chegam a bulir com a indagação mais profunda, tipo, da luta de classes.
Houve o exemplo, espantosamente recente, do general Paulo Sergio Nogueira de Oliveira, cuja liderança em campo da operação de ataque ao sistema brasileiro de votação eletrônica foi salpicada de declarações, profissões, juras de “espírito colaborativo com o TSE”, sempre destacadas pela imprensa como sinais do espírito legalista de um militar profissional acossado, pobre diabo, pelo golpismo encarniçado de Jair Bolsonaro.
Mesmo assim, nesta sexta-feira, 27, a imprensa, em uníssono, destacou de um quebra-queixo com o general Tomás Paiva, feito na saída de uma reunião do novo comandante do Exército com Geraldo Alckmin, a declaração, profissão, jura feita pelo general de que “militar ou civil, ninguém está acima da lei”.
Porém, no mesmo quebra-queixo, segundos antes, Tomás Paiva sinalizou o exato contrário do que acabou virando manchete. Perguntado sobre se haverá mais trocas no Exército, o general respondeu:
“Por enquanto a gente está tranquilo. Quando tiverem as reuniões administrativas normais, de promoção e transferência, a gente vai fazer as trocas necessárias”.
Desde a campanha de ataque às urnas eletrônicas até o 8/1, passando pelos bloqueios coordenados nas estradas iniciados ainda na noite do segundo turno e pelos acampamentos golpistas/terroristas nas portas de quartéis em todo o Brasil, tudo aponta para uma conspiração contra a República longamente gestada não apenas sob as barbas, não só sob as asas, mas nomeadamente sob a batuta das Forças Armadas, até a violenta parturição em plena Praça dos Três Poderes.
O senhor general Tomás Paiva, porém, adiantou que sobre oficiais golpistas pesará não exatamente a lei, mas a mão amiga do normal sistema de promoções e transferências do Exército Brasileiro.
Tudo como dantes no quartel de Tomás Paiva – o Forte Apache.
Comandante da Guarda Presidencial, unidade que permitiu a depredação do Palácio do Planalto no 8/1, o coronel Paulo Jorge Fernandes da Hora, por exemplo, já “caiu para cima”: o Forte Apache antecipou a alocação do coronel, prevista desde antes do 8/1 no normal sistema de promoções e transferências do Exército, para um cargo no Estado-Maior do Comando Militar do Planalto, que é chefiado pelo general Gustavo Henrique Menezes Dutra.
Uma hipótese impossível como arma de dissuasão
Nesta sexta-feira, 27, na apresentação do relatório da intervenção no Distrito Federal sobre os fatos ocorridos no 8/1, o interventor Ricardo Cappelli disse, mais de uma vez, que na noite do 8/1 o General Dutra “ponderou” contra a disposição do governo Lula de desmantelar de bate-pronto o acampamento golpista na frente do QG do Exército.
Que na noite do 8/1 o Comando Militar do Planalto tenha bloqueado com soldados e blindados o acesso da polícia ao Setor Militar Urbano; que na noite do 8/1 militares do CMP tenham apontado canhões para viaturas policiais, tudo isso certamente é mera “ponderação”.
Ricardo Cappelli é um homem capacitado, sério e honrado, mas este tipo de postura, ou descompostura com os fatos, depois de tudo, é um insulto ao povo brasileiro, e não é o maior.
O maior é o esboço de versão dita possível sobre o 8/1 apresentado nesta sexta por Cappelli, o de que “na melhor das hipóteses, faltou responsabilidade”. É falso, porque claro está que esta hipótese não existe, nem como melhor, nem como pior, nem como do meio; claro está que os fatos ocorridos no 8/1 não foram produto de falta de competência, preparo e comando, mas justa e precisamente do oposto: coordenação, orquestração e conspiração profissionais.

Talvez por falta mesmo de alternativa, o governo Lula parece disposto a arriscar alguns passos pra lá, passos pra cá com os milicos à beira do precipício. Há sinais de negociação de um armistício com as Forças Armadas na qual o governo usa a possibilidade de investigação, responsabilização e punição de militares de alta patente pelo 8/1 como uma espécie de arma de dissuasão.
Não por acaso Ricardo Cappelli foi dúbio nesta sexta, quando iniciou a apresentação do relatório parecendo que iria arrasar o “invicto” Exército de Caxias, chegando a falar em “uma violenta minicidade golpista, terrorista, montada em frente ao QG do Exército”, para depois tergiversar sobre as “ponderações” do general Dutra e botar na roda das “narrativas” aquela impossível “melhor das hipóteses” sobre os ataques terroristas em Brasília.
O círculo de confiança mais perigoso do Brasil
Armistício, porém, denota suspensão apenas temporária das hostilidades. Por acaso as forças desarmadas, como diria Edson Fachin, estão esperando chegar os seus próprios submarinos nucleares, seus caças Gripen, seus blindados Centauro II para encarar um novo bloqueio inimigo – esta é a palavra – na via de acesso ao Setor Militar Urbano, no dobrar da esquina da História?
Existirá momento mais propício do que o atual para levar a cabo o incontornável enfrentamento da questão militar no Brasil, da ideia terrorista de “poder moderador” que grassa nas Forças Armadas, do seus sistemas de ensino e formação voltados contra o “inimigo interno”, dos seus sistemas de promoções e transferências que perpetuam e premiam o golpismo?
Ainda sobre a prática e sobre a contradição, por assim dizer: na semana que se encerra, a imprensa brasileira adiantou que o general Tomás Paiva teria pedido a Lula “um crédito de confiança”. O general Tomás Paiva é do círculo de confiança do general Eduardo Villas Bôas. É simplesmente, e não é de hoje, o mais perigoso círculo de confiança do Brasil. O próprio Lula, há poucos anos, foi vítima dele.
Nesta sexta, numa live, uma jornalista também capacitada, séria e honrada desmereceu as tentativas de compreender o propósito, de situar no contexto da conspiração militar contra o governo Lula a fala legalista do general Tomás Paiva e sua subsequente nomeação para o comando do Exército: “não me interessa saber se o general falou aquilo por convicção ou por oportunismo. Importa que ele falou”.
Importa, sem dúvida, e é compreensível a ansiedade para que o governo Lula tenha tranquilidade para, afinal, governar. Mas não será espanando perguntas, muito menos sobre os milicos, que se chegará a algum ponto de sossego. Desde quando a imprensa não se interessa por saber?