Em artigo publicado n’O Globo deste sábado, 5, Carlos Alberto Sardenberg estende a polêmica que travou na TV há dois dias com Guga Chacra, seu colega das Organizações Globo, sobre o contexto da invasão da Ucrânia pela Rússia. Para Sardenberg, “a Rússia é culpada, sem adversativas”. Este é mesmo o título do artigo e é o cúmulo do maniqueísmo fácil que tem sido a tônica do noticiário em geral sobre a guerra na Ucrânia.

Na TV, há dois dias, Sardenberg indignou-se ao vivo quando Guga Chacra disse que era de se esperar que a Rússia não fosse assistir imperturbável ao abraço da Otan na maior e mais importante das ex-repúblicas soviéticas.

Este, porém, é o cerne incontornável para qualquer esforço de compreensão da dramática situação na Ucrânia. Não é possível sonhar em entender a situação na Ucrânia sem notar uma contradição fundamental da Europa no pós-guerra, quando foi criada a Otan, e sobretudo após o fim da União Soviética.

A Europa, que desde o fim da II Guerra tenta empurrar para longe do seu território os terrenos de explosão das tensões interimperialistas, ao mesmo tempo vergou-se aos interesses geopolíticos dos EUA, via Otan, nomeadamente o de manter a Rússia em certo patamar de contenção e isolamento.

Assim, há anos os EUA e a Europa vêm tensionando cada vez mais a corda à medida que a aliança militar transatlântica avança para os países da antiga cortina de ferro, para as ex-repúblicas soviéticas bálticas, e agora requisitando a Ucrânia, com piscadelas à Geórgia, à Moldávia e à Finlândia, que fica a duas horas de carro – ou de tanque – de São Petersburgo.

Não é exatamente coisa de quem quer a paz.

E a geopolítica, que ninguém se engane, não é a política do bufão Zelensky; é a política pesada das potências imperialistas. E tudo indica que o principal movimento no âmbito da geopolítica, hoje, é uma decisão de Washington de apear Vladimir Putin do Kremlin, açulando uma guerra de fato, terrível, arrasadora, sangrenta, seguida de uma guerra econômica, e tudo junto sem chance de retorno à situação geopolítica anterior a elas.

Neste sentido, em entrevista publicada nesta sexta-feira, 4, também no jornal O Globo, um analista da insuspeita Rand Corporation disse que os EUA e a UE não têm como política oficial “uma mudança na liderança política russa”, mas têm isso como “efetivamente uma demanda de fato”; “uma busca global de fato por uma mudança de regime, mesmo que não seja explicitamente declarada”.

Mas Sardenberg, como dizíamos, indignou-se com Guga Chacra: “Então você está dizendo que Putin está certo?”. Parecia dar pausa no Disney Plus para comentar na GloboNews o filme da Marvel “Vingadores – a Era de Ultron”, no qual o Capitão América, o Homem de Ferro e o Deus do Trovão – e, claro, o Hulk – salvam a fictícia república de Sokovia, no leste da Europa, de um desses planos malignos de aniquilação.

A diferença do Universo Marvel para o universo de Carlos Alberto Sardenberg, porém, é que até nos roteiros dos filmes dos Vingadores há “adversativas”, para usar o léxico do velho “Sarda”, ou contexto, para usar uma palavra cara ao jornalismo, mesmo quando Loki, o Deus da Trapaça vindo de Aasgard, resolve abrir um portal no céu para a invasão de Midgard – a Terra – por um exército alienígena…

Em seu artigo deste sábado, Sardenberg diz que “são inteiramente equivocadas as análises segundo as quais a Rússia se sentiu ameaçada pelo avanço da União Europeia e da Otan na direção do Leste Europeu, dos ex-satélites soviéticos. Sei que gente bem intencionada diz isso. Ainda assim, é um grave equívoco. E, sim, equivale a dar razão a Putin”.

Para Carlos Alberto Sardenberg, ganhador de uma pá de troféus de jornalismo, pouco importa o contexto em que os fatos se desenrolam. Para o fulano, contextualizar é “dar razão” a beltrano ou sicrano, quando, neste caso, contextualizar é informar às pessoas que, no duro, para acabar com a guerra na Ucrânia, é necessário combinar com os ianques, além dos russos.

Mas Sardenberg não está só, e nem precisa ir longe. Na página seguinte, n’O Globo deste sábado, o sociólogo Bernardo Sorj chega a delirar que “os EUA protegem a ordem mundial do capitalismo democrático”. Pergunte no Iraque, na Líbia ou no Afeganistão. Um dia antes, no mesmo jornal, outro destacado articulista, Pedro Dória, dizia que Zelensky é o novo Churchill – no que, por inferência, Putin seria o novo Hitler.

O próprio Guga Chacra anda afirmando que é “absurdo” relacionar a Ucrânia de hoje a elementos fascistas porque Zelensky é judeu, como se o racismo fosse o fator essencial e definidor do fascismo, e não o chauvinismo; como se os nacionalismos reacionários que até anteontem os pós-modernos julgavam sepultados não estivessem sendo atiçados há tempos, diante dos olhos de todos – e a Ucrânia é exemplo crasso – nos palcos mais buliçosos das disputas de partilha e repartilha do mundo.

Mas o que importam, para entender a guerra na Ucrânia, os jogos, processos e decisões de partilha e repartilha do mundo entre as potências imperialistas? O que importam as contradições no seio do imperialismo, que, acirradas, desaguam na guerra? O que importa, afinal, esclarecer?

Segundo Sardenberg, seus que tais e, pior, segundo o noticiário em geral, nada disso importa. Para eles, importa é atiçar o ardor “sem adversativas”, acrítico, de um bem contra um mal, apostando no maniqueísmo levado ao cúmulo, o que nunca levou este mundo a bom termo, e como se a paz pudesse prescindir do esclarecimento.

Apostar assim é dobrar a aposta na tragédia.

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