O último grande massacre promovido por Israel na Faixa de Gaza, antes do massacre em curso, aconteceu entre julho e agosto de 2014, quando 1.475 civis palestinos foram mortos. Naquela feita, os que se dizem investidos por Javé na posse da “terra prometida” mataram 506 crianças em Gaza e deixaram feridas outras 3.598. Setenta por cento das crianças palestinas assassinadas pelo exército de Israel naquele ano tinham menos de 12 anos de idade.
O documentário “Nascidos em Gaza”, disponível na Netflix, conta a história de algumas crianças palestinas sobreviventes do massacre de 2014, quando, segundo denúncias, Israel chegou a usar novamente bombas de fósforo branco na Faixa de Gaza, após comprovadamente ter usado contra Gaza em 2009 esta arma incendiária proibida pela ONU.
Todas as crianças que aparecem no documentário “Nascidos em Gaza” aparentam ter entre 8 e 12 anos, algumas um pouquinho mais, outras um bocadinho menos. Vamos mencionar algumas delas a seguir. Vamos mencioná-las no pretérito, seja porque o filme é de nove anos atrás; seja porque, bem, Israel, nunca parou; seja porque o índice de suicídios em Gaza disparou a partir de 2015 para níveis assustadores, impulsionado pela desespero justamente dos jovens nascidos em Gaza.
Mohamed, por exemplo, aparentava ser o mais velho. Ele sonhava ser pescador, mas passava seus dias debaixo de sol revirando escombros e aterros de monturo à cata do que podia vender para ajudar os pais e as irmãs. Costumava ganhar o equivalente a um euro por dia, basicamente juntando garrafas pet. “É difícil aguentar, porque sou pequeno”, dizia, como quem matura a fórceps, em descompasso com o corpo de criança. Outra dificuldade para o pequeno grande Mohamed era que às vezes ele encontrava bombas não detonadas no meio dos escombros. Não dava para deixar bombas não detonadas para trás. Era, e ainda é, material valioso: “eu as pego com medo de que explodam”.
Udai era menorzinho – oito, nove ou 10 anos de idade. Ele contou sua história nos escombros da antiga fábrica de refrescos do pai. A fábrica tinha sido destruída num bombardeio de Israel, mas aquele não tinha sido o pior bombardeio para Udai em 2014. O menino relatou que um dia seu irmão mais velho estava distribuindo refresco na rua quando foi atingido por um míssil. Udai ergueu até a altura do peito as duas mãos espalmadas na vertical, alinhadas, distantes poucos centímetros entre si, para dizer, com os olhos vermelhos, que “o maior pedaço que sobrou dele era assim”.
Outro menino, Rajaf, recebeu no meio do massacre de 2014 a notícia de que a ambulância que seu pai dirigia tinha sido atingida por um míssil: “meu pai tinha ido socorrer a vítima de um ataque. No caminho, tinham bombardeado uma família de sete pessoas. Ele também as socorreu. Estavam todos na ambulância quando houve o ataque. A explosão foi tão forte que todos os corpos se mesclaram”.
Durante a ofensiva de Israel contra Gaza em 2014, seis motoristas de ambulância e 13 enfermeiros foram mortos enquanto socorriam mutilados. Outros 49 médicos, enfermeiros ou motoristas de ambulância e 33 trabalhadores humanitários ficaram feridos.
Em 2014, Hamada perdeu quatro primos para um míssil de Israel. Ele, os primos e amigos jogavam bola na praia quando tudo aconteceu. Disse Hamada ao documentarista três meses após aquela partida de futebol:
“Por jogar bola, mataram quatro de nós e feriram outros quatro. O que vão fazer conosco quando formos maiores? Motassem é o que está pior dos quatro. Muito pior. Às vezes, de repente, ele começa a gritar como um louco. Vê o espírito do irmão. Todos os dias ele vê coisas, vê os meninos mortos. Tirem ele daqui para que o ajudem, por favor. Ajudem ele. Ajudem ele a esquecer o que aconteceu com a gente”.
“Nós vivemos uma vida de merda – disse ainda Hamada -. Terra, mar, tudo bloqueado. Eu sou um menino igual a todos os outros do mundo. Isso não é vida. Tenho que passar meus dias vendendo chá e café para levar dinheiro pra casa. Não me restam amigos, nada. Não brinco, não tenho nada. Gostaria de entrar para a resistência e fazer justiça pelos meus primos”.
Caso estejam vivos, Mohamed, Udai, Rajaf e Hamada – e Motassem – têm hoje cerca de 20 anos de idade. Não é a idade de Cristo, mas é idade pro Hamas. Caso estejam vivos e buscando justiça pelos seus parentes e amigos mandados pelos ares, estarão entre aqueles que Israel prometeu, nesta segunda-feira, 9, caçar como “animais humanos” na Faixa de Gaza. Caso estejam vivos e buscando apenas sobreviver, também.
Deixe uma resposta