No final de 1970, Chico Buarque humilhou a Ditadura com “Apesar de você”, que algum censor estúpido, com o perdão do pleonasmo, entendeu como mera crônica de amores contrariados, liberando (num primeiro momento) a canção, que dizia:
Quando chegar o momento, esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido, esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza de desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada nesse meu penar
Salvo engano, foi a última vez que Chico Buarque usou a palavra “fineza” numa canção. Isso até esta segunda-feira, 24,
Na tarde desta segunda, Chico, em nome dos humilhados e ofendidos pelo governo Bolsonaro, “fosso sob muitos aspectos mais profundo” que a ditadura; com a sensibilidade de se emocionar com sua companheira atravessando a avenida para comprar-lhe uma gravata para um dia de glória; trazendo o sangue do açoitado e o sangue do açoitador; envergonhado porque seus antepassados brancos “trataram de suprimir da história familiar” a história dos açoitados; conhecido em Portugal como “o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim”; Chico, dizíamos, apresentou na tarde desta segunda, em Portugal, a inédita “Rara fineza”, que diz assim:
Quatro anos de governo funesto
Duraram uma eternidade
Porque foi um tempo em que o tempo parecia
Andar para trás
Aquele governo foi derrotado nas urnas
Mas nem por isso
Podemos nos distrair
Pois a ameaça fascista persiste
No Brasil como um pouco por toda parte
Hoje, porém, nesta tarde de celebração
Reconforta-me lembrar que o ex-presidente
Teve a rara fineza
De não sujar o diploma
Do meu prêmio Camões