Mais de três anos após o fim da intervenção federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro, em dezembro de 2018, o Gabinete de Intervenção ainda funciona, executa orçamento próprio, vem entregando às forças policiais do Rio um arsenal digno de um front ucraniano, e no organograma oficial o general Walter Souza Braga Netto, atual ministro da Defesa, ainda aparece como interventor.
Em novembro de 2018, às vésperas do fim da intervenção, Braga Netto disse num seminário na Câmara dos Deputados que existia “a previsão dessa transição nossa ir até junho ou julho”, referindo-se à manutenção do Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro (GIFRJ) até meados de 2019, com o objetivo de executar um plano de entrega de materiais e equipamentos às polícias civil e militar fluminenses – o plano de “legado” da intervenção.
A manutenção estava garantida pelo decreto 9.410 de 13 de junho de 2018, assinado por Michel Temer e cujo 8º artigo previa que, “encerrada a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, as atividades do Gabinete de Intervenção Federal no Estado do Rio de Janeiro serão concluídas até o dia 30 de junho de 2019”.
Em 27 de junho de 2019, porém, o governo Bolsonaro estendeu a existência do GIFRJ até 31 de março de 2020 (decreto 9870/19). Ainda em 2019, outro decreto (10192/19) empurrou o prazo para 1º de dezembro de 2020. Em novembro de 2020, novo decreto (10547/20) e nova data para o fim do gabinete: 1º de dezembro de 2021. Em novembro de 2021, Bolsonaro editou um quarto decreto (10875/21), prorrogando o funcionamento do Gabinete de Intervenção até o dia 3 de agosto de 2022.
Incluindo o chamado “período de entrega”, iniciado com o fim da intervenção em 2018, o GIFRJ repassou às polícias do Rio quase três mil viaturas, 680 motocicletas, 17 ônibus, 78 drones, 210 sprays de pimenta, 27 mil pistolas, 292 espingardas calibre 12, oito submetralhadoras, 1.500 fuzis, seis mil “armas menos letais” e mais de um milhão de munições.
Também foram entregues três blindados Urutu e três “Caveirões”. Os Urutus tinham sido usados pelas tropas do general Augusto Heleno no Haiti e sua distribuição ficou a cargo da Secretaria de Segurança do Rio. Os “Caveirões” foram destinados especificamente à Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais (CORE) da Polícia Civil. Isto foi no dia 28 de março de 2018, duas semanas após o assassinato de Marielle Franco.
“Tropa de Elite” da Polícia Civil, a CORE foi responsável em maio de 2021 pela mais letal operação policial já realizada no estado do Rio de Janeiro, no Jacarezinho, quando 28 corpos restaram estendidos no chão.
“Tive que carregar uns 10 corpos para dentro do caveirão”, disse um dos presos na operação, em audiência de custódia, sobre, digamos, o “legado” da intervenção. Além dos “caveirões” terrestres, aquela operação, que teve repercussão internacional após o Le Monde chamar atenção para o “banho de sangue”, teve como símbolo também os “caveirões aéreos”, ou “águias”, dois apelidos para os helicópteros blindados das “forças de segurança” do Rio de Janeiro.
Entre inúmeros outros equipamentos de repressão entregues pelo GIFRJ às polícias do Rio de Janeiro estão 1.770 equipamentos de alpinismo para serem usados em operações com helicópteros. Isto foi em 2019, já no “período de entrega”.
Uma vez interventor, sempre interventor
A mais recente entrega do GIFRJ ao Rio aconteceu na última sexta-feira, 11, quando Braga Netto foi pessoalmente ao Forte de Copacabana para passar às mãos da Secretaria de Estado de Polícia Civil do Rio de Janeiro (Sepol) precisamente um helicóptero blindado. Na cerimônia, Braga Netto defendeu a Garantia da Lei e da Ordem e o projeto de excludente de ilicitude para “segurança jurídica dos militares das forças armadas e das forças de segurança”.
Na manhã da última sexta, enquanto Braga Netto divagava na Zona Sul carioca sobre “segurança jurídica” para policiais, ao lado do governador Claudio Castro e diante do helicóptero dado de presente pelo Gabinete de Intervenção à Civil, uma outra intervenção, esta do Bope, deixou oito mortos em uma ladeira da Vila Cruzeiro, a 25 quilômetros do Forte de Copacabana, em mais um episódio da escalada da violência policial no Rio, o que levou o STF determinar que o estado apresente um plano para que sua polícia pare de matar tanta gente assim.

Naquela cerimônia da semana passada em Copacabana, Braga Netto disse que não estava ali como ministro de Estado, mas como antigo interventor. No organograma oficial da estrutura da Intervenção Federal do Rio de Janeiro, porém, Braga Netto resta como “interventor” no “período de entregas”, ainda em curso, prorrogado por Jair Bolsonaro até as vésperas eleitorais.
Come Ananás entrou em contato com o Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro para saber se o general Walter Souza Braga Netto ainda tem algum tipo de vínculo formal com o gabinete. Até agora, não houve resposta.
Atualização: 16/02/22, 15h32.
O GIFRJ respondeu ao contato do Come Ananás informando que:
O Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro integra a estrutura da Casa Civil da Presidência da República e está disciplinado nos termos do Decreto nº 9.870, de 27 de junho de 2019.
A exoneração do General de Exército Walter Souza Braga Netto do cargo de Interventor foi publicada no Diário Oficial da União nº 61, Seção 2, de 29 de março de 2019.
A Lei nº 13.701, de 6 de agosto de 2018, que criou o cargo de natureza especial de Interventor Federal no Estado do Rio de Janeiro, também estabeleceu que o referido cargo seria extinto em 30 de junho de 2019 e seu ocupante ficaria automaticamente exonerado ou dispensado nessa data.
Com tantas entregas feitas ao Rio de Janeiro, Braga Netto só não entregou até hoje quem mandou matar Marielle Franco, assassinada no dia 14 de março de 2018, menos de um mês após o início da intervenção.
‘Identificação de líderes de opinião’
Uma das primeiras entregas feitas pelo GIFRJ à Polícia Civil do Rio após o fim da intervenção – e, portanto, já sob o governo Bolsonaro – aconteceu em março de 2019 e foi a de um sistema de monitoramento de redes sociais chamado Global Intelligence Dashboard (GID).
O GID permite “o monitoramento automático, em tempo real, de atividades suspeitas na internet” e é capaz de “pesquisar, gerenciar, monitorar e correlacionar grandes quantidades de dados simultaneamente, permitindo respostas imediatas na busca dessas informações e geração de relatórios”.
Entre as maravilhas que sistema GID é capaz de realizar, o Gabinete de Intervenção Federal no Rio de Janeiro (GIFRJ) citou, na época, a “identificação de líderes de opinião”. Qualquer semelhança com outro gabinete, o do ódio, pode não ser mera coincidência.
