Preocupada em não ‘passar pano pro Hamas’, mídia acaba passando pano pra solução final em Gaza

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Um dos palcos dos sangrentos episódios do último sábado, 7, em território israelense, a cidade de Sderot, a 75 quilômetros de Tel Aviv, chegou a ser tomada por comandos do Hamas. Não se sabe ao certo quantos dos 30 mil habitantes de Sderot estão entre os mais de 1.200 israelenses mortos no fim de semana. São impressionantes as imagens de uma imensa delegacia de polícia em Sderot reduzida a cinzas. O Hamas afirma ter disparado mais de 100 foguetes contra a cidade no dia classificado pelo embaixador de Israel na ONU como “o nosso 11 de setembro”.

Quando da última vez que Israel tinha movido uma grande ofensiva contra a Faixa de Gaza, entre julho e agosto de 2014, também, como agora, foi em resposta a ataques desferidos de Gaza que também tinham entre os alvos a cidade de Sderot. No dia 11 de julho daquele ano, o mais respeitado jornalista europeu em assuntos de Oriente Médio, o saudoso Robert Fisk, publicou no The Independent, de Londres, um artigo intitulado “A verdadeira história de Gaza que os israelenses não estão contando esta semana”, no qual dizia:

“Os israelenses de Sderot estão sob o fogo de foguetes dos palestinos de Gaza e agora os palestinos estão recebendo o castigo. Claro. Mas espere. Pra começar, como é que todos esses palestinos – todos os 1,5 milhão – acabaram amontoados em Gaza? Bem, suas famílias já viveram no que hoje é chamado de Israel. E foram expulsas – ou fugiram para salvar as suas vidas – quando o Estado de Israel foi criado”.

“As pessoas que viviam em Sderot no início de 1948 não eram israelenses, mas sim árabes palestinos. A aldeia deles chamava-se Huj. Nem eram inimigos de Israel. Dois anos antes, estes mesmos árabes tinham escondido combatentes judeus da Haganá que estavam sendo perseguidos pelo exército britânico. Mas quando o exército israelense apareceu em Huj, em 31 de Maio de 1948, expulsou todos os aldeões árabes – para a Faixa de Gaza! Eles se tornaram refugiados. Os palestinos de Huj nunca foram autorizados a regressar”.

“Hoje, mais de seis mil descendentes dos palestinos de Huj – agora Sderot – vivem na miséria em Gaza, entre os ‘terroristas’ que Israel afirma querer destruir e disparando foguetes contra onde um dia foi Huj. História interessante”.

A história é interessante e é paradigmática da perversidade, do cinismo, dos crimes inclusive de limpeza étnica imanentes ao Estado de Israel desde a sua criação. Porém, se você contar essa história esta semana, quando pela primeira vez Israel e seu regime de apartheid se viram em larga desvantagem na taxa de câmbio de cadáveres, arrisca ser acusado de “passar pano pro Hamas”. Nesta semana, se você escapulir um milímetro da fórmula (des)informativa terrorismo/direito de Israel à autodefesa, com a qual a mídia corporativa ajuda pavimentar uma invasão de Gaza por terra, você estará “passando pano pro Hamas”.

Sobre o direito de Israel à autodefesa, aliás, escreveu Robert Fisk naquele mesmo artigo de 2014:

“Ouvimos isso novamente hoje. E se o povo de Londres estivesse sendo atacado como o povo de Israel? Eles não contra-atacariam? Bem, sim, mas nós, britânicos, não temos mais de um milhão de ex-habitantes do Reino Unido enfiados em campos de refugiados na costa de Hastings”.

“A última vez que este argumento capcioso foi utilizado foi em 2008, quando Israel invadiu Gaza e matou pelo menos 1.100 palestinos (para 13 israelenses mortos). E se Dublin estivesse sob ataque de foguetes, perguntou então o embaixador israelense? A cidade britânica de Crossmaglen, na Irlanda do Norte, esteve sob ataque de foguetes da República da Irlanda na década de 1970, mas a RAF não bombardeou Dublin em retaliação, matando mulheres e crianças irlandesas”.

Caso um veículo da imprensa alternativa, cumprindo seu papel, insista nesta semana em pisar muito fora da fórmula (des)informativa que agrada ao lado poderoso, aquele que impõe o grande e duradouro sofrimento na Palestina histórica, receberá mensagem recomendando ao editor “esquerdista” que vá “dar meia hora de bunda”, como este Come Ananás recebeu de um perfil com a imagem da bandeira de Israel sobreposta por uma faixa de luto.

Transformadas rapidamente em salvo-conduto para o genocida Netanyahu levar a cabo aquele que se anuncia o maior banho de sangue já visto na Faixa de Gaza, as cenas de barbárie promovidas por comandos do Hamas no sábado no sul de Israel vêm servindo também para figuras conhecidas da mídia brasileira incorrerem em barbaridades analíticas, dando sua valorosa contribuição para a engrenagem global de propaganda sionista e, no limite, para o morticínio de palestinos já em marcha.

Nos últimos dias, na TV brasileira, nem uma, nem duas, mas várias vezes badalados comentaristas de política internacional – ou de qualquer coisa – emprestaram sua credibilidade para a ideia de que o Hamas, com o ataque de sábado, “adiou o sonho do Estado palestino”. Parece que a criação do Estado palestino, desde sempre boicotada por Tel Aviv, estava finalmente encaminhada e ninguém sabia. Talvez a solução de dois Estados viesse durante a gestão de um dos mais fracos presidentes dos EUA desde a criação de Israel. Talvez Netanyahu fosse o primeiro governante da História a ter em mente a paz, não a guerra, para respirar em meio a escândalos de corrupção.

No mais importante canal de notícias do Brasil, a Globo News, a cobertura dos fatos em curso no Oriente Médio começou correta, sob o comando sereno e crítico de Marcelo Lins, mas logo se perdeu completamente sob o reacionarismo siderado de Guga Chacra, Demétrio Magnoli e que tais. A emissora passou a garimpar soldados israelenses que falam português para, em português, na TV brasileira, com o dedo no gatilho, falarem à vontade que estão prestes a sair à caça de “animais”. Um deles chegou a dizer que serve nas fileiras do Exército do Rei Davi.

Nos estúdios, houve muita – e justa, e necessária – indignação na tarde desta terça-feira, 10, diante das cenas chocantes de membros de um kibutz do sul de Israel sendo friamente executados por membros do Hamas. Ao mesmo tempo, a imagem de uma menina palestina carbonizada sendo carregada nos braços por um homem na Cidade de Gaza, após um bombardeio de Israel, foi repetida várias vezes sem merecer exclamações. Fazê-lo talvez tenha virado também “passar pano pro Hamas”.

Na tarde desta terça, no canal que nunca desliga, quando, entre o ranger de dentes de soldados de Israel, um estudioso do Oriente Médio lembrou que a Faixa de Gaza é uma gigantesca prisão a céu aberto, no estúdio ouviu-se apenas o cri cri dos grilos do Jardim Botânico.

Robert Fisk costumava dizer que jornalistas deveriam ser neutra e imparcialmente a favor daqueles que mais sofrem. Quando a mídia dá de ombros para a existência de um campo de concentração, demasiadamente preocupada em não “passar pano pro Hamas”, com medinho do sionismo, acaba passando pano pra solução final.

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