Uma portaria do apagar das luzes do governo Temer classificou joias como presentes “de natureza personalíssima que não serão incorporados ao acervo patrimonial da Presidência da República”, mas sim, portanto, ao acervo privado do mandatário de turno. A portaria foi editada pela Secretaria-Geral da Presidência da República no dia seguinte ao início formal do governo de transição Temer-Bolsonaro.
A portaria número 59 de 8 de novembro de 2018 dispõe sobre a política para gestão de bens históricos e artísticos da Presidência da República. Ela diz que serão incorporados ao acervo patrimonial da presidência os bens “recebidos pelo Presidente da República e consorte em situações caracterizadas oficialmente como cerimônias de troca de presentes”; ou mesmo “recebidos protocolarmente, em decorrência de relações diplomáticas vigentes”.
Exceto, ressalva a portaria, “os bens que forem de natureza perecível ou personalíssima”.
Em um anexo dedicado aos “conceitos e definições” abordados na portaria, o item IV especifica o que seriam “bens de natureza personalíssima”:
“Bens que, pela natureza, destinam-se ao uso próprio do recebedor, a exemplo das condecorações (grão colar, medalhas, troféus, prêmios, placas comemorativas), vestuários (camisa, calça, sapato, boné, chapéu, pijama, gravata), artigos de toalete (perfumes, maquiagem, cremes, diversos), roupas de casa (cama, mesa, banho), perecíveis (frutas secas, chás, bebidas alcóolicas, castanhas), artigos de escritório (canetas, cadernos, agendas, risque-rabisque, pastas), joias, semijoias e bijuterias”.
Em acórdão de 2016, o TCU estabeleceu que apenas “itens de natureza personalíssima ou de consumo direto” recebidos pelo presidente de governos estrangeiros não precisam ser incorporados ao acervo patrimonial da Presidência da República. Porém, o relator do caso, ministro Walton Alencar, excluiu explicitamente as joias do rol de itens pessoais do presidente quando proferiu seu voto em plenário:
“Imagine-se, a propósito, a situação de um chefe de governo presentear o Presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do Presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”.
O acórdão 2255/2016 do TCU fixou complementariedade ao decreto 4344/2002, que trata dos acervos privados dos presidentes da República, clarificando que joias cravejadas de pedras preciosas não podem ser abiscoitadas para o acervo privado do presidente como se fossem bijuterias, bonés, roupas de banho, frutas secas ou risque-rabisque.
Pisando distraída no fato de que o caso das “joias das arábias” é antes de tudo um caso de contrabando de pedras preciosas envolvendo a Presidência da República – e talvez não seja isolado -, a defesa de Jair Bolsonaro vêm brandindo que o ex-presidente e sua consorte abiscoitaram ou tentaram abiscoitar joias valiosíssimas dadas pela ditadura da Arábia Saudita porque seriam “bens de caráter personalíssimo”, posto que, aparentemente, ofertadas em decorrência de relações diplomáticas vigentes.
Verniz técnico
Nesta quarta-feira, 8, Come Ananás mostrou que em 9 de dezembro de 2021, 44 dias após a apreensão no aeroporto de Guarulhos das joias que seriam presentes da Arábia Saudita para Michelle Bolsonaro, o gabinete do então presidente Bolsonaro instituiu uma “Política de Acervos Presidenciais Privados”.
O ato se deu pela resolução 1/2021 da Comissão Memória dos Presidentes da República, órgão vinculado ao Gabinete Pessoal do presidente. A “Política de Acervos Presidenciais Privados” tem entre suas diretrizes “prestar apoio técnico ao Presidente da República durante o seu mandato nos assuntos referentes ao seu acervo privado”.
A resolução que instituiu a “Política de Acervos Presidenciais Privados” foi assinada pelo à época chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência da República, o capitão-de-corveta Marcelo da Silva Vieira.
Em 29 de outubro de 2021, três dias após a apreensão em Guarulhos, o capitão-de-corveta enviou um ofício ao Ministério das Minas e Energia orientando a pasta a preencher e apresentar à Receita Federal o Formulário de Encaminhamento de Presentes para o Presidente da República, visando desembaraçar as joias e a fim de que os presentes fossem encaminhados ao gabinete pessoal de Bolsonaro, “para o devido tratamento técnico” pelo gabinete adjunto de documentação histórica.
O ofício de Marcelo para as Minas e Energia dizia ainda que as joias apreendidas deveriam chegar “fisicamente” – esta é a palavra usada no documento – ao gabinete presidencial “para análise quanto à incorporação ao acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”.