Só pra lembrar quem foi que abriu a temporada de fogaréus
Há exatamente três meses, no dia 14 de junho, começou debaixo dos narizes de mais de 400 militares do Exército um incêndio que aniquilou 300 hectares do primeiro parque nacional do Brasil.
Quem mora em Resende ou Itatiaia e quem passou pela Via Dutra, pela região das Agulhas Negras, no fim da tarde de qualquer dia desta semana pôde ver a serra da Mantiqueira sob a penumbra laranja do agronegócio, do negacionismo climático e de quem não é “agro”, nem nega as mudanças climáticas, mas transige e pactua com as forças que acabam reduzindo o Brasil a cinzas, a pó.
A fumaça que defumou a Mantiqueira ao longo da semana, e ainda defuma, essa fumaça vem de longe, territorialmente falando. Não há, por ora, grandes incêndios ativos na região das Agulhas Negras. O último foi em junho e foi um dos primeiros desses últimos meses de mato seco em chamas Brasil afora, fora os do Pantanal, que o Pantanal já ardia há tempos. Vamos lembrar então quem foi que abriu esta arrasadora temporada de fogaréus no país?
O incêndio que em junho aniquilou 300 hectares do Parque Nacional do Itatiaia, no Sul Fluminense, começou há exatos três meses, no dia 14 daquele mês, debaixo dos narizes de mais de 400 militares da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman). Foi o que disse uma “nota de esclarecimento” da própria Aman divulgada tardios cinco dias depois, em 19 de junho, só após o site O Eco veicular imagens mostrando que, apesar de serem tantos, centenas, os militares foram embora da área do foco inicial sem apagar o fogo.
Numa cabalística concomitância, o incêndio começou justamente no dia em que o Parque Nacional do Itatiaia, o mais antigo do Brasil, completou 87 anos de existência. Aquele 14 de junho foi também o último dia do Estágio Básico do Combatente de Montanha, atividade de instrução realizada anualmente pela Aman na Parte Alta do parque.
Três dias depois, em 17 de junho, O Eco divulgou gravações em vídeo que mostravam um grande comboio do Exército parado na Parte Alta ao lado do foco que deu origem ao incêndio – um foco, naquela altura, ainda pequeno. Cinco minutos depois, o comboio deixou o local, enquanto o fogo parecia aumentar.
A câmera que flagrou centenas de militares do Exército dando no pé no comecinho do incêndio que varreu grande parte de uma área de nascentes de vários rios, abrangendo 12 importantes bacias hidrográficas, a câmera, dizíamos, tinha sido instalada dois meses antes, no início do abril, numa parceria entre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a ong SOS Mata Atlântica para transmitir ao vivo imagens da Parte Alta do parque no YouTube.
Um especialista em incêndios florestais ouvido por O Eco sob anonimato disse que, dadas as condições meteorológicas do dia, a probabilidade de o fogo mostrado nas imagens ter sido causado por um raio é praticamente nula: “o fato é que foram mesmo os militares. Como foi exatamente não dá para saber ainda, mas ou foi algum deles que colocou o fogo ou pode ter sido algo do escapamento dos caminhões”.
Na nota divulgada após as imagens virem à tona, a Aman afirmou que os militares identificaram o foco de incêndio quando já estavam embarcados nos veículos, prontos para o regresso à academia, em Resende. A nota diz que “alguns desembarcaram” para tentar apagar o fogo, mas não conseguiram e acabaram indo embora “por questão de segurança”. Ainda segundo a nota, havia cerca de 415 cadetes no local. Repetindo: cerca de 415 cadetes contra um pequeno foco de incêndio. E o comando? Quem foi que deu a ordem de bater em retirada?
Numa postagem feita no Instagram naquele mesmo 14 de junho, a Aman informou que três generais do Exército, além de outros oficiais, juntaram-se aos cadetes “ao amanhecer” na “tradicional escalada ao Pico das Agulhas Negras”. A postagem foi justamente sobre o encerramento do Estágio Básico do Combatente da Montanha. As imagens do início do incêndio junto ao comboio do Exército foram gravadas pouco depois das duas da tarde.
O generais citados na postagem são: Marcus Vinicius Gomes Bonifácio, comandante da Aman; João Felipe Dias Alves, ex-comandante da Aman e Diretor de Educação Superior Militar do Exército; e Ricardo Augusto Montella de Carvalho, Comandante da 4ª Brigada de Infantaria Leve de Montanha. Uma das fotos da postagem mostra os três, juntos, com as Agulhas Negras ao fundo.
Na época, Come Ananás entrou em contato com a Aman para saber se os generais Vinicius, Felipe e Montella de fato estavam na Parte Alta do Parque Nacional do Itatiaia no dia do início do incêndio e se eles estavam no comboio do Exército que deixou para trás o foco inicial, sem apagar o fogo. Três meses depois, a resposta ainda não chegou.
No dia 21 de junho, quando o fogo no Itatiaia foi finalmente controlado, surgiu a informação de que o Ministério Público já estava investigando a responsabilidade do Exército na destruição do equivalente a 300 campos de futebol em campos de altitude no primeiro parque nacional do Brasil.
No último 22 de agosto, a 4ª Câmara de Coordenação e Revisão (Meio Ambiente e Patrimônio Cultural) do Ministério Público Federal arquivou a Notícia de Fato 1.22.012.000363/2024-79, porque, “segundo a Aman, não houve omissão do Exército”, nos termos do voto do relator. Para o relator, “não há elementos de informação indicando que o incêndio tenha sido provocado e/ou intencional, apto a ensejar a instauração de inquérito policial”.
Na Procuradoria da República em Resende, uma outra Notícia de Fato, esta sim, virou Inquérito Civil, ainda em andamento, para investigar o fato, o fogo “ocorrido em local por onde transitava comboio de veículos militares do Exército Brasileiro”.