'Sem anistia': nem para os golpistas de hoje, nem para os agentes da ditadura
Decisão do STF põe em pauta a rediscussão sobre o perdão aos acusados de praticarem graves violações de direitos humanos e crimes permanentes durante o regime militar.
O Supremo Tribunal Federal abriu caminho para uma deliberação permanentemente adiada: a decisão sobre o verdadeiro alcance da Lei de Anistia de 1979. Com um detalhe fundamental, cujas consequências o noticiário sobre o tema não ressaltou até o momento: a extensão da discussão a “graves violações de direitos humanos”, que, a rigor, abrange todos os crimes cometidos pelos agentes da repressão durante a nossa mais recente ditadura.
Na última sexta-feira, dia 21, o plenário virtual da corte concluiu pela repercussão geral – que vale para todos os casos semelhantes – do julgamento de três processos sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes: os de Rubens Paiva, Mário Alves e Helber José Gomes Goulart. Os dois primeiros, relativos a pessoas até hoje desaparecidas, se enquadram na categoria de crimes permanentes, mas não o terceiro: militante da ALN, Goulart foi assassinado em 1973 e enterrado como indigente no cemitério de Perus, em São Paulo, mas em 1992 seus restos mortais foram exumados e identificados.
A apreciação desse caso marca um avanço em relação à recente posição do ministro Flávio Dino, relator de um processo sobre a guerrilha do Araguaia, que põe em pauta a abrangência da Lei de Anistia, mas se limita aos casos de ocultação de cadáver – uma das formas jurídicas de qualificar o desaparecimento forçado, que até hoje não é tipificado na lei penal brasileira. A inclusão do processo referente a Goulart amplia a discussão para outros tipos de crimes.
“Esse conceito de graves violações de direitos humanos é um conceito do sistema interamericano de direitos humanos, é mais amplo do que crime contra a humanidade”, diz o jurista José Carlos Moreira da Silva Filho, professor de direito na PUCRS e vice-presidente da Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. “Ele envolve crimes que o Estado possa praticar, por meio dos seus agentes, independentemente de ser ou não em contexto de perseguição política sistemática. Este é um critério para definir o crime contra a humanidade, estabelecido no Estatuto de Roma, ratificado pelo Brasil, e que deu origem ao Tribunal Penal Internacional”.
Crime contra a humanidade, explica José Carlos, é a prática de assassinato, violência sexual, escravidão, tortura, atos que isoladamente seriam crimes comuns e têm seu tempo de prescrição, mas que, se forem praticados num contexto de perseguição sistemática a um grupo específico da população civil, passam a ser crimes contra a humanidade, e por isso não podem ter anistia ou prescrição. “Só que a Corte Interamericana de Direitos Humanos entende que atos como tortura, violência sexual, assassinato, desaparecimento, quando praticados pelo Estado contra um cidadão, por si só já são uma grave violação de direitos humanos e são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, independentemente de estarem ou não atrelados a uma perseguição política sistemática. Esse conceito do sistema interamericano é mais amplo e é isso que o Alexandre de Moraes está colocando em discussão, juntamente com a hipótese de crime permanente, como a ocultação de cadáver, por exemplo. Porque esse terceiro cidadão, o Helber Goulart, não está desaparecido, o corpo dele foi encontrado, ele está sepultado. Então não é hipótese de crime permanente”.
Diferentemente de Dino, que já se manifestou sobre seu entendimento quanto ao caso de que é relator e declarou que crimes permanentes não estavam cobertos pela lei, Moraes não indicou como votaria. Mas só o fato de abrir a possibilidade dessa análise significa o reconhecimento de que há suficiente fundamentação para se firmar uma tese de repercussão geral sobre o alcance da Lei de Anistia tanto para os crimes permanentes quanto para as graves violações de direitos humanos. Além disso, estimula a recuperação de uma discussão sempre interditada sob o argumento – melhor dizendo, a reação automática – de que qualquer dúvida sobre a reciprocidade supostamente estabelecida pela Lei de Anistia significava “revanchismo”.
Uma lei da ditadura e uma conexão ‘sui generis’
Atualizar a discussão sobre a Lei de Anistia exige considerar o contexto em que ela foi aprovada e as mudanças que ocorreram desde a conclusão do trabalho da Constituinte, que em 1988 promulga uma nova Constituição para tempos democráticos, até a conjuntura atual, em que por pouco escapamos de um golpe capaz de nos fazer retornar aos velhos tempos.
Aprovada em agosto de 1979, a Lei de Anistia instituía o perdão aos “crimes políticos e conexos com estes” e foi objeto de muita polêmica em torno do significado do Art. 1º, §1º, que considerava conexos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Já em 1980, por exemplo, o criminalista Nilo Batista publicava, no nº 19 da Revista Civilização Brasileira, artigo em que discutia a definição de crime político e conexo, para demonstrar que a tortura estava excluída dessa classificação. Mas o que se impôs – pois, afinal, ainda estávamos em plena ditadura, e ainda teríamos o atentado ao Riocentro, em 1981, como marco da ação dos “bolsões sinceros, mas radicais” contra o processo de abertura “lenta e gradual”, mas muito insegura – foi o entendimento de quem formulou a lei, com o objetivo de impedir a investigação dos crimes cometidos pela repressão a quem resistia à violência do regime.
Estudioso dos processos de justiça de transição – um conceito relativamente recente, que designa as práticas e mecanismos a serem adotados pelos Estados que saem de ditaduras ou outras situações de exceção para ingressarem num regime democrático –, José Carlos Moreira da Silva Filho mostra que o que se privilegiou no Brasil, diante das circunstâncias, foi o investimento na reparação das vítimas, não na responsabilização de seus algozes. Ele aponta o ano de 2008 como um marco no questionamento jurídico da tese da reciprocidade da lei, quando o Ministério da Justiça e a Comissão da Anistia organizaram, em julho, a audiência pública sobre os “Limites e possibilidades para a responsabilização jurídica dos agentes violadores de direitos humanos durante o estado de exceção no Brasil”. Em outubro daquele ano, a OAB protocolou a ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) 153, na intenção de que o STF decidisse não estender a anistia a crimes de lesa-humanidade na perseguição a militantes contra a ditadura, o que implicava uma reinterpretação restritiva do sentido de “crimes conexos”. Em 2010, o STF rejeitou a demanda, considerando que a conexão criada pela Lei da Anistia era “sui generis” e resultava do acordo realizado na época entre o governo militar e a oposição.
José Carlos contestou essa decisão num artigo escrito na época – e incluído no livro Justiça de transição: da ditadura civil-militar ao debate justransicional, lançado em 2015 –, em que detalha as incongruências dos argumentos que a sustentaram, e demonstra que o tal acordo não foi estabelecido em paridade de forças: ou a oposição aceitava os termos propostos, ou não haveria anistia. Ainda assim, a lei foi importante no lento processo de retorno à democracia, embora já devesse ter sido reapreciada desde a promulgação da nova Constituição, “que funda uma nova realidade jurídica, na qual não há nenhum artigo que corrobore esse entendimento, pelo contrário, define que a tortura é insuscetível de graça e anistia”. José Carlos considera inclusive que a Constituinte, da forma como foi realizada – não em gabinete fechado, com reunião de notáveis, como se desejava originalmente, mas através de uma discussão ampla com os movimentos sociais –, significou um mecanismo de justiça de transição. Incompleto e insuficiente, é verdade, mas muito relevante, e não é casual que a Constituição dela resultante seja permanentemente alvo das forças reacionárias.
Reinterpretar, não rever
O jurista argumenta que não se trata de sugerir uma revisão – como tem sido corriqueiro dizer –, mas uma reinterpretação, ou melhor, uma interpretação adequada da Lei de Anistia. “Eu por exemplo defendo a tese de que a lei deve ser interpretada de acordo com a ordem democrática brasileira e com os compromissos internacionais que o Brasil tem. Os tratados de direitos humanos que o Brasil ratificou, entre eles o que o submete à jurisdição da Corte Interamericana e ao Pacto de San José da Costa Rica, estão acima de todas as leis brasileiras, embora abaixo da Constituição de 88. Então a Lei de Anistia de 79 está abaixo dos tratados internacionais. Se o Brasil concordou que vai obedecer a eles, a gente já tem fundamento jurídico suficiente para não aplicar a Lei de Anistia aos torturadores. Por isso, a meu ver, a questão central não é a revisão da lei, a questão central é a interpretação adequada”.

A possibilidade de reconsideração aberta agora resulta do fato de que, diferentemente do entendimento que se consolidou publicamente – provavelmente porque a imprensa hegemônica não se interessou em levantar a questão, pelo contrário, sempre rechaçou qualquer discussão –, não há decisão definitiva sobre a aplicabilidade da lei. A conclusão do STF sobre a ADPF 153 não resultou em coisa julgada: no mesmo ano de 2010 a OAB entrou com embargos declaratórios em consequência da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund, sobre a repressão à guerrilha do Araguaia e seu rol de desaparecidos, que se encaixa no conceito de crimes permanentes, portanto, imprescritíveis e insuscetíveis de anistia. Além disso, em 2014, o PSOL protocolou a ADPF 320, reforçando aqueles embargos declaratórios, e obteve parecer favorável do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
O que fez o STF desde 2010? “Nada”, diz José Carlos. “A estratégia foi não se movimentar”. Por isso todas as iniciativas do MPF contra os agentes da ditadura ficaram bloqueadas.
De repente, o carro começa a andar.
Por quê?
O novo cenário
José Carlos acredita que três fatores podem explicar essa mudança. Primeiro, o acúmulo jurídico, desde 2010, com a condenação do Brasil pela Corte Interamericana, primeiro no caso Araguaia, depois no caso Vladimir Herzog, e em breve provavelmente no caso Bacuri – codinome de Eduardo Collen Leite, militante de organizações guerrilheiras morto em 1970. “No Ministério Público Federal havia um grupo de justiça de transição, mas era minoritário, porém desde a decisão sobre o caso Araguaia o MPF mudou de posição e passou a prevalecer o entendimento de que era seu dever investigar e oferecer denúncia para a apuração desses crimes”, diz o jurista. “Além disso, antes de 2010 a própria Comissão Nacional da Verdade ainda não havia sido instalada, não havia uma mobilização suficiente para pressionar o Supremo a tomar uma decisão diferente da que ele tomou”.
O segundo fator seria a afronta sistemática ao STF durante o governo Bolsonaro, culminando com a depredação da Praça dos Três Poderes no 8 de janeiro de 2022. Finalmente, a repercussão do filme Ainda estou aqui, coincidente com a investigação da Polícia Federal sobre a conspiração golpista, que significaria, caso tivesse sido vitoriosa, o retorno àqueles tempos de terror. Por isso, o diretor do filme, Walter Salles, disse que sua obra não era sobre o passado, era sobre o que estamos vivendo agora. Por isso também faz sentido associar as duas coisas: a rejeição à anistia a Bolsonaro e demais denunciados pela tentativa de golpe de Estado e a rejeição à anistia aos torturadores do tempo da ditadura. “O bordão ‘sem anistia’ para golpista, ‘sem anistia’ para quem defende tortura, ‘sem anistia’ para ditadura, agora popularizou-se”, diz José Carlos.
O jurista considera que há uma forte tendência de o STF rever sua posição em relação aos crimes permanentes, de modo que os responsáveis pelo sequestro e ocultação do cadáver de Rubens Paiva – e de Mário Alves e demais “desaparecidos” – sejam processados penalmente. Talvez não chegue a tanto na apreciação aos crimes que configuram “graves violações aos direitos humanos”. Mesmo essa revisão parcial, entretanto, já seria um grande avanço, que contemplaria em parte a longa luta dos movimentos populares, de familiares de ex-perseguidos políticos e dos comitês brasileiros pela anistia.
José Carlos cita a pesquisa de Mauro Almeida Noleto, Anistia e Transição política no Brasil – silêncio perpétuo?, publicada no fim do ano passado, que mostra um padrão das anistias concedidas desde a abolição da escravatura e ao longo de toda a história republicana brasileira. “O padrão é: aqueles que foram violados e perseguidos são reparados pela metade, quando não revitimizados, e aqueles que perseguiram e violaram não são responsabilizados. Nós temos exatamente esse perfil na anistia de 1979. Então, se agora se confirmar a expectativa de não anistiar os golpistas, principalmente os militares, o que é inédito para nós, e se junto com esse processo for revista a anistia concedida para alguns dos perpetradores da ditadura – porque o Brasil é o único país da America Latina que não fez nada nesse sentido –, então vamos estar quebrando uma longa tradição”.
Nada impede que uma eventual vitória da extrema-direita em eleições futuras promova nova reviravolta. Se alguma coisa aprendemos nos últimos anos, é que nenhuma conquista é garantida. Por isso é tão importante zelar pela ordem democrática, e avançar na responsabilização dos que querem derrubá-la. Por isso também é tão importante zelar pela memória, um tema inevitável quando se trata de discutir anistia. Como disse José Carlos numa entrevista de dez anos atrás, diferentemente do que se costuma pensar, a memória é viva. “A memória significa novidade, não só por abrir expedientes que a história hegemônica quer dar por encerrados, mas também porque, ao colocarem seu foco no reconhecimento da violência e da injustiça do passado, entendem a violência e a injustiça do presente. Assim, possibilitam um novo começo, uma reorientação da sociedade e do Estado para a não repetição. E, consequentemente, para uma sociedade menos violenta e mais justa. Não há tema mais atual do que a memória”.
A orientação era ‘baixar a bola’ do Rubens Paiva
(Breve história de uma esperança frustrada)
No início de setembro de 1986, os jornais noticiaram que o procurador geral da Justiça Militar, Francisco Leite Chaves, havia reaberto o caso Rubens Paiva, causando inevitável turbulência política no país, que a duras penas começava a sair da ditadura. Apesar de trabalhar na editoria de esportes do Globo, pensei que estava ali uma boa oportunidade para fazer uma reportagem com argumentos jurídicos que pudessem questionar a tese, sustentada pelos militares e reproduzida acriticamente pela imprensa, da reciprocidade da Lei de Anistia de 1979, segundo a qual os agentes da repressão também teriam sido anistiados e, por isso, não poderiam sequer ser julgados, quanto mais punidos pelos crimes que cometeram. Essa tese decorria da interpretação do que seriam os “crimes conexos” aos políticos, definidos sem muita clareza na lei.
Marquei entrevistas com os juristas Hermann Baeta, então presidente do Conselho Federal da OAB, Eduardo Seabra Fagundes – que ocupava o mesmo cargo quando foi alvo de uma carta-bomba que matou sua secretária, Lyda Monteiro da Silva, em 1980 –, Nilo Batista, ex-presidente da seccional Rio da OAB e autor, já em 1980, de um artigo que contestava a tese oficialmente aceita quanto à abrangência da lei, e Laércio Pellegrino. Os três primeiros deixaram clara a improcedência da interpretação prevalecente sobre o crime conexo: não só porque a tortura seria um crime comum, sem relação com o político, mas porque, de acordo com o direito criminal, não há conexão entre uma ação e a repressão a ela. Pellegrino expôs ressalvas a esse argumento, considerando a hipótese de uma interpretação literal da lei. Mas concordou com os colegas quanto a outro aspecto fundamental: a anistia só poderia ser concedida nos autos de um processo. Ninguém poderia ser anistiado em tese.
Ofereci a matéria ao jornal, sabendo que não a publicariam. Pouco depois fui demitida, na greve geral de dezembro de 1986 – que não foi realmente geral, mas teve adesão maciça dos jornalistas –, e consegui uma vaga provisória na sucursal do Estadão, sempre no esporte, cobrindo uma licença. Ali, como era previsível, também rejeitaram a reportagem. Então procurei a Folha de S.Paulo, que cultivava a aura de “jornal das Diretas” e abraçava as causas mais progressistas. Fiquei entusiasmada com a boa receptividade, mas o tempo passava e a matéria não saía. Telefonei para saber o motivo da demora e o chefe de reportagem disse que haviam desistido de publicá-la porque a orientação era “baixar a bola do Rubens Paiva”.
Foram precisamente essas as palavras. Faz quase quarenta anos, mas certas coisas a gente não esquece.
Lembro que não respondi, mas pensei: a bola do Rubens Paiva já baixaram há muito tempo, como é que não percebem que o que está em jogo é a nossa bola...
Já sem esperança, procurei o Jornal do Brasil. Lembro que estava cobrindo o GP de Fórmula-1, no meu último dia de trabalho no Estadão, quando um colega me deu a notícia: saiu a tua matéria! Por um momento mandei às favas Prost, Senna, Piquet, e corri pra ver: estava lá, no BEspecial. Cortada pela metade, com um título estranhíssimo, mas com destaque, ressaltando os pontos essenciais das entrevistas.
Não poderia receber melhor notícia naquele domingo, 12 de abril de 1987. Quem sabe não se abria ali uma oportunidade de avançar numa discussão sempre rejeitada sob a pecha de “revanchismo”? Quem sabe não seria possível emplacar outras pautas correlatas, aproveitando o momento de ebulição política da Constituinte?
Meu assanhamento murchou duas semanas depois. Em 26 de abril, o mesmo BEspecial publicava duas reportagens sobre vítimas da ditadura com um lidão que começava assim: “Pelo menos até que alguém possa provar o contrário, a anistia foi o ponto final nos problemas de natureza jurídica criados pelo confronto entre a oposição e a repressão nos anos de fogo da ditadura militar”.
Nenhuma das matérias mencionava a Lei de Anistia. Aquela referência, na abertura do lidão, era completamente desnecessária. Mas não estava ali por acaso: indicava um recuo deliberado, uma forma de apagar, sem citá-la, a reportagem que havia sido publicada duas semanas antes.
(Este seria o comportamento dos principais jornais do país ao longo dos anos. Fernando Perlatto, num capítulo de seu livro As disputas do passado na esfera pública. Ditadura, democracia e tempo presente, mostra como O Globo, Folha e Estadão reagiram à instalação e aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, entre 2012 e 2014, em especial quanto à hipótese de revisão da Lei de Anistia: “lamentável”, “oportunista”, “revanchismo”, “extrapolação perigosa”).
Não procurei saber o que teria levado o jornal a agir daquela forma. Apenas concluí que foi uma tremenda sorte ter conseguido aquela brecha para levantar uma bola que só agora, à custa de uma luta coletiva e persistente de quase quatro décadas, parece ter condições de se sustentar.
Talvez valha a pena ler, ou reler, a reportagem que levou sete meses para sair. Não teve repercussão, os tempos não eram favoráveis, mas permanece válida pelos argumentos que expõe – inclusive sobre o dever da memória – e que sustentam esta verdade: não, nunca, a Lei de Anistia pode ter sido feita com essa intenção, mas não anistiou torturadores coisa nenhuma.
A conexão tortura*
Haverá na lei da anistia uma brecha para a punição dos que cometeram crimes contra os presos políticos?
Sylvia Moretzsohn
O ponto de vista das Forças Armadas vem sendo tomado como a palavra final sobre o assunto: ao anistiar os “crimes políticos e conexos com estes”, a Lei 6.683, de 28.8.1979, teria automaticamente estabelecido a reciprocidade. A tortura a presos políticos, embora não admitida oficialmente, estaria implicitamente incluída entre os “crimes conexos”. No meio jurídico, porém, a questão é no mínimo controversa. E volta à discussão com as recentes denúncias em torno da morte do ex-deputado Rubens Paiva.
Concentra-se a polêmica na interpretação do parágrafo 1 do artigo 1º da lei, segundo o qual “consideram-se conexos (...) os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. O presidente do Conselho Federal da OAB, Hermann Baeta, o ex-presidente da entidade, Eduardo Seabra Fagundes, e o ex-presidente da sua seccional Rio, Nilo Batista, afirmam que tortura é crime comum e não crime conexo ao político. Já o criminalista Laércio Pellegrino sustenta que uma interpretação literal da lei inclui o delito na categoria de conexo. Mesmo assim, ressalva, ninguém pode ser anistiado em tese, sendo necessário a existência de um processo para a aplicação da lei.
Hermann Baeta considera viável a punição criminal dos torturadores, impossível se a lei os beneficiasse, pois a anistia extingue o crime. O Código Penal não define a tortura como crime, mas qualifica os seus efeitos. “No caso da tortura que tenha resultado em morte, o prazo de prescrição é de 20 anos”. Mas ele não se detém na análise da lei, pois adota o pressuposto de que “nada impede a apuração dos fatos, até porque um tribunal só pode decretar a anistia nos autos de um processo. E há implicações civis cujo cumprimento também decorre da apuração”. Como integrante do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Baeta propôs a criação de uma comissão para investigar os casos de desaparecidos e está levantando dados a respeito de um deles, Jayme Amorim de Miranda.
“A família dele, como a das demais vítimas da repressão, e a sociedade como um todo, têm o direito de saber o que aconteceu naquele período. É preciso saber quem torturou e matou, pois essas pessoas estão entre nós. Mesmo que não haja punição, haverá o julgamento da sociedade. O torturador será identificado na comunidade onde vive. Todos saberão que cometeu um ato degradante. E esta será a melhor garantia de que a tortura não voltará”. Baeta acha que numa hora de Constituinte não se pode temer o esclarecimento dos fatos. “E nisso os militares deveriam ter interesse, para preservar a imagem de sua instituição”. Ele considera que as Forças Armadas não podem ser responsabilizadas, a priori, pelos crimes contra os que se opuseram ao regime. Por isso, a apuração é necessária. “Se o agente cometeu o crime por conta própria ou cumprindo ordens, se essa ordem partiu do Estado ou não, quem pode dizer é o processo”.
Embora reconheça que haverá dificuldades de origem diversa para a apuração, Seabra Fagundes acha importante demonstrar que a Lei de Anistia não beneficia os torturadores. “Foi essa a intenção, só que o governo não teve coragem de assumir o ônus. Então fez uma lei nebulosa. Contudo, a matreirice do legislador não atingiu o objetivo. Até agora a interpretação oficial foi um sucesso, mas uma análise rigorosa dirá que a verdade é outra”. Segundo o direito criminal, lembra, o conceito de conexão pressupõe a solidariedade entre os agentes. “Há conexão entre quadrilha e roubo, entre furto e receptação, mas não entre uma ação e a repressão a ela”. Ele entende que, como a anistia apaga o crime, não seria possível abrir processos novos relativos aos delitos contemplados pela lei. Por isso é essencial a definição precisa de crime conexo ao político. A partir dela, nada impede a apuração das responsabilidades nos casos de tortura.
Logo após a Lei de Anistia ser sancionada, houve um debate sobre a extensão dos seus efeitos. Em 1980, o criminalista Nilo Batista escreveu um artigo em que se detém na definição de crime político e conexo a fim de provar que a tortura está fora dessa classificação. Argumentando com a tese internacionalmente aceita de que o crime comum, para ser considerado conexo ao político, guarda uma relação de subordinação com este, Nilo conclui que a anistia alcança “não só os delitos comuns que sejam meios para a prática de crimes políticos, ou para escapar às penas desses (conexão em sentido objetivo), bem como quaisquer (ainda que não relacionados objetivamente com um crime político), desde que praticados com motivação política” – apontando aí o critério subjetivo para a definição de crime conexo.
No que diz respeito à ação civil, Nilo aponta hoje uma falha: a não continuação do processo. Pois se o Estado é declarado culpado e, como tal, obrigado a indenizar a família de uma vítima da tortura, o próprio Estado deveria cobrar do torturador o pagamento da indenização. “Do contrário, quem paga é o contribuinte... Mas por que até hoje o Estado não foi atrás dos responsáveis? Temor de que o chamamento de autoria se transforme numa escadinha que não se sabe aonde vai dar? O capitão que cometeu o crime teria agido sob as ordens de um major, que obedeceria a um coronel, que estaria subordinado a um general, que agiria de acordo com um industrial... Está faltando esse tipo de apuração que, juridicamente, depende da observância dos prazos de prescrição da lei. Mas, essencialmente, depende de uma decisão política”.
Interpretando literalmente a lei, Laércio Pellegrino afirma que a tortura está objetivamente incluída na categoria de crime conexo. Seu argumento baseia-se num pequeno detalhe: “A conjunção coordenativa alternativa ou, no texto do parágrafo 1 do artigo 1º, separa a ‘motivação política’ dos ‘crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos’. Se não estava agindo por motivação política, qual seria a outra motivação do criminoso? Estaria cumprindo ordens superiores”. Faz, porém, uma ressalva: só o Poder Judiciário (em última instância, o STF) pode dar a interpretação definitiva da lei. E para tanto seria preciso haver processos contra os torturadores.
“Anistiar alguém por antecipação é uma heresia jurídica. É condição sine qua o anistiado estar respondendo a processo ou já ter sido condenado, pois a lei se aplica a processos em curso ou findos”. Pellegrino ampara sua argumentação no artigo 75 do Código Penal de 1890 (vigente até 1940), segundo o qual a anistia “extingue todos os efeitos da pena e põe perpétuo silêncio ao processo”, pressupondo sempre processo ou condenação anterior à sanção da lei. Pellegrino admite que a interpretação literal da Lei 6.683 “é apenas uma entre tantas possíveis e necessárias”, e que deve chocar-se com uma interpretação essencial: a histórica. Pois a origem da anistia, diz, “é restabelecer a paz numa comunidade dividida por motivos políticos”. Existe essa paz hoje no Brasil? Pellegrino acha que não. “A tortura é de tal forma hedionda que provoca um sentimento de repulsa muito forte. Tanto que é considerada pela ONU um crime imprescritível”.
*Jornal do Brasil, caderno BEspecial, domingo, 12/4/87, p.8.
Baita texto Sylvia. Desde 86, quando eu, então tinha 20 e poucos...