Os apagões em São Paulo e as viagens elétricas do diretor-geral da Aneel
Sandoval Feitosa participou de evento nos EUA com ingresso pago por associação que representa os interesses das distribuidoras de energia junto à agência reguladora. Entre elas, a Enel.
Há quase um ano, no dia 1º de novembro de 2023, chegou à sede na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em Brasília, uma carta do senhor Dymitr Wajsman endereçada ao senhor Sandoval de Araújo Feitosa Neto. Feitosa é diretor-geral da Aneel. Wajsman é presidente da associação UTC America Latina (UTCAL), entidade privada criada em 2013 para “representar os interesses das utilities junto a agências reguladoras”.
Utilities são corporações que operam concessões públicas de fornecimento de água, gás e energia elétrica. Todos os membros efetivos da UTCAL, no entanto, são concessionárias apenas de transmissão e distribuição de energia que operam no Brasil, entre elas a Neoenergia, CPFL, Copel, Equatorial, EDP - as beneficiárias da “reestruturação do setor elétrico”, um dos nomes fantasia - e bota fantasia nisso - da privataria cometida por Fernando Henrique Cardoso 30 anos atrás.
A Enel também está lá.
Todos os membros efetivos da UTCAL têm assentos no Conselho Diretor da entidade.
A UTCAL, que fica na cobertura do número 128 da avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, é o braço no Brasil da Utilities Technology Council (UTC), associação com sede no número 2550 da South Clark Street, no condado de Arlington, Virgínia, Estados Unidos da América.
Criada em 1948 para defender os interesses de concessionárias de energia nos EUA, a UTC, segundo seu site, atua “por meio de advocacy [um tipo de lobby], educação e colaboração” a fim de criar “um ambiente comercial, regulatório e tecnológico favorável” para as corporações - as suas associadas - que operam concessões de serviços públicos de missão crítica.
“De sua sede em Arlington - diz ainda o site da entidade - a UTC fornece informações, produtos e serviços que ajudam os membros a expressarem suas preocupações aos legisladores e reguladores”.
Na carta que chegou à Aneel em novembro do ano passado, Dymitr Wajsman convidava Sandoval Feitosa para o evento “Distributech 2024”, em Orlando, na Flórida, e depois atravessar os EUA até San José, na Califórnia, para participar de um programa de “capacitação técnica” da transnacional de tecnologia Cisco.
A Cisco é membro associado da UTCAL.
E o Distributech é o maior evento do setor de transmissão e distribuição de energia dos EUA, um dos maiores eventos do tipo em todo o mundo. Realizado todos os anos, mistura show room, ciclo de palestras e muito “networking” visando “impulsionar o setor para frente”.
Sandoval Feitosa viajou para a Flórida no dia 25 de fevereiro deste ano para participar do Distributech 2024, a convite de Wajsman, e voltou no dia 6 de março, após passar - um diretor de agência reguladora do Brasil - por treinamento na Cisco, na Califórnia, a convite de Wajsman também. Feitosa viajou com seu assessor Leandro Caixeta Moreira, com um outro servidor da agência, Matheus Palma Cruz, e ainda na companhia de representantes de várias distribuidoras de energia que operam no mercado brasileiro.
Desde que foi criada, há 11 anos, a UTCAL vem organizando “delegações técnicas do Brasil” para o Distributech. A Aneel foi junto nesse bonde primeira vez em 2018, quando o evento aconteceu em San Antonio, no Texas, voltando a integrá-lo em 2022 (San José, Califórnia), em 2023 (San Diego, Califórnia) e agora, em 2024. Nunca, porém, até este ano, um diretor-geral da Aneel em pessoa tinha embarcado no bonde anual da UTCAL e suas associadas (reguladas pela agência) para os Estados Unidos da América.
Sandoval Feitosa está à frente da Aneel desde o dia 15 de agosto de 2022. Nestes dois anos e dois meses, foram 78 viagens a serviço como diretor-geral da agência. Em média, o viajante elétrico embarcou num avião para sair de Brasília uma vez a cada 10 dias.
Depois do grande apagão de novembro do ano passado em São Paulo, Feitosa viajou de Brasília para a capital paulista nada menos que 15 vezes. Nenhuma delas, porém, para tratar o que quer que fosse com a Enel. Salvo quando, ainda em novembro, o diretor-geral da Aneel pegou a ponte aérea para participar de uma reunião sobre “táticas para aprimoramento e recuperação energética de São Paulo”.
A mais recente viagem de Feitosa para a capital paulista, no dia 3 de outubro, foi para participar de um evento organizado por outro membro associado da UTCAL, a Siemens.
Indicado por Jair Bolsonaro para o cargo, Sandoval Feitosa deve ter percebido que o titulo de um relatório apresentado pela Siemens naquele evento, "Pictures of Transformation - um retrato do Brasil em 2035", remete ao nome do projeto de ditadura reloaded urdido nos círculos militares no governo Bolsonaro sob a batuta do general Villas-Bôas - o “Projeto de Nação: o Brasil em 2035”.
A Siemens - logo a Siemens, que ajudou a financiar a Operação Bandeirantes, precursora do DOI-Codi na ditadura - parece que não percebeu a semelhança.
No último 9 de setembro, o diretor-geral da Aneel fez uma “viagem urgente” para São Paulo a fim de participar de… um podcast - um podcast da Megawatt, “empresa de conteúdo e notícias para o mercado de energia”.
Nove das 78 viagens feitas por Sandoval Feitosa desde agosto de 2022 foram internacionais, incluindo o tour Orlando-San José.
Outra dessas viagens para fora foi a participação de Feitosa no XI Fórum Jurídico de Lisboa, em 2023. No dia 28 de junho do ano passado, no “Gilmarpalooza”, festival de lobbies e conflitos de interesses promovido todos os anos por Gilmar Mendes em Portugal, Feitosa, suposto fiscal das elétricas, dividiu com executivos de duas delas uma mesa sobre “política energética”: uma diretora do Grupo Energisa e o presidente da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig).
Essa foi a única aparição de Sandoval Feitosa do programação do Gilmarpalooza 2023, mas ele ficou em Lisboa durante quase uma semana, de 24 a 29 de junho, ao custo R$ 28.369,80 aos cofres públicos, entre passagens e diárias, segundo dados disponíveis no Portal da Transparência. A viagem de Feitosa e outros dois representantes da Aneel para os EUA, em fevereiro, para o Distributech e para serem treinados pela Cisco, essa custou R$ 97.227,81, entre passagens e diárias.
Já o valor das inscrições dos representantes da Aneel no Distributech 2024 não aparece no Portal da Transparência. Isso porque as inscrições deles no evento foram pagas pela UTCAL. A informação está num documento da própria Aneel, do processo interno que autorizou a viagem. Os ingressos para o Distributech 2024 custavam entre US$ 599 e US$ 1.095 mil. Feitosa e seus assessores ganharam da UTCAL o mais caro, o “Utility All Access”.
A Aneel tem a missão de criar condições para que o mercado brasileiro de energia se desenvolva em benefício da sociedade e tem o propósito de garantir o fornecimento de energia elétrica a todos os brasileiros, em nome da cidadania e do desenvolvimento sustentável do Brasil. A atuação dos servidores da Aneel - como de quaisquer servidores - deve ser pautada pelo compromisso com o interesse público.
O “Utility All Access” dado pela associação das fiscalizadas aos fiscalizadores dava acesso a “mesas redondas de café da manhã”, “Lounge Utility” e “às nossas famosas festas de networking”.