O nome deles é gorila
De uma carta de Gramsci aos filhos, escrita da prisão, foi feito um belo livro infantil. Alguém poderia fazer o mesmo com uma carta de Rubens Paiva a Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacazão e Babiu.
Entre as muitas cartas que Antonio Gramsci escreveu da prisão para sua esposa, Giulia, e seus filhos, Delio e Giuliano, a carta do dia 1º de junho de 1931 é especial. Nela, Gramsci conta uma fábula da sua cidade Natal e pede assim à companheira: “querida Giulia, não deixe de contar essa história e depois me comunique as reações dos meninos”.
Eis a carta:
Querida Giulia,
Gostaria de contar a Delio uma história de minha cidadezinha que me parece interessante. Vou resumi-la para você, que depois vai lhes contar, a ele e a Giuliano. Um menino dorme. Há um jarro de leite pronto para quando acordar. Um rato bebe o leite. O menino, sem ter o leite, grita, assim como grita a mãe. O rato, desesperado, bate a cabeça contra a parede, mas percebe que não adianta nada e corre até a cabra para conseguir algum leite. A cabra lhe dará o leite se tiver capim para comer. O rato vai até o campo em busca do capim e o campo, seco, quer água. O rato vai até a fonte. A fonte foi arruinada pela guerra e a água vaza: a fonte quer que o mestre pedreiro a conserte. O rato vai ao mestre pedreiro: este quer pedras. O rato vai até à montanha, que foi desmatada pelos especuladores e mostra por toda parte suas entranhas sem terra. O rato conta toda a história e promete que o menino, uma vez crescido, há de replantar pinheiros, carvalhos, castanheiras, etc. Assim, a montanha dá as pedras, etc., e o menino recebe tanto leite que até se banha com ele, etc. Cresce, planta as árvores, tudo muda; desaparecem as entranhas da montanha sob o novo húmus, a precipitação atmosférica volta a ser regular porque as árvores retêm os vapores e impedem que as torrentes devastem a planície, etc. Em suma, o rato concebe uma verdadeira piatilietka [plano quinquenal]. É uma história típica de uma região devastada pelo desmatamento. Querida Giulia, não deixe de contar essa história e depois me comunique as reações dos meninos.
Abraços carinhosos,
Antonio
Em 2017, 86 anos depois, a editora espanhola Milrazones transformou a carta de Gramsci em um lindo livro infantil, “O rato e a montanha”, com texto levemente adaptado e ilustrado pela artista catalã Laia Domenèch. Em 2019, a Boitatá, selo infantil da Boitempo, publicou o livro no Brasil.
Em maio deste ano, saiu uma outra edição de “O rato e a montanha” no Brasil, da editora Círculo do Livro, com texto adaptado pelo gaúcho Donaldo Buchweitz e ilustrações do peruano César Muñoz Moreno.
Quando escreveu a carta do rato e a montanha, das masmorras de Benito Mussolini, Antonio Gramsci tinha a mesma idade de Rubens Paiva quando o deputado foi morto e desaparecido nas masmorras de Emilio Médici. Anos antes, logo após o golpe de 1964, Paiva, cassado e perseguido, refugiou-se na Embaixada da Iugoslávia em Brasília. Foi de lá, naqueles dias, que ele escreveu a seguinte carta aos seus filhos:
Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacazão e Babiu.
Recebi suas cartinhas, desenhos etc., fiquei muito satisfeito de ver que os nenês não esqueceram o velho pai. Aqui estou fazendo bastante ginástica, fumando meus charutos e lendo meus jornais. É possível que o velho pai vá fazer uma viagenzinha para descansar e trabalhar um pouco. Vocês sabem que o velho pai não é mais deputado? E sabem por quê? É que no nosso país existe uma porção de gente muito rica que finge que não sabe que existe muita gente pobre, que não pode levar as crianças na escola, que não tem dinheiro para comer direito e às vezes quer trabalhar e não tem emprego. O papai sabia disso tudo e quando foi ser deputado começou a trabalhar para reformar o nosso país e melhorar a vida dessa gente pobre. Aí veio uma porção daqueles muito ricos, que tinham medo que os outros pudessem melhorar de vida e começaram a dizer uma porção de mentiras. Disseram que nós queríamos roubar o que eles tinham: é mentira! Disseram que nós somos comunistas que queremos vender o Brasil: é mentira! Eles disseram tanta mentira que teve gente que acreditou. Eles se juntaram – o nome deles é gorila – e fizeram essa confusão toda, prenderam muita gente, tiraram o papai e os amigos dele da Câmara e do governo e agora querem dividir tudo o que o nosso país tem de bom entre eles que já são muito ricos. Mas a maioria é de gente pobre, que não quer saber dos gorilas, e mais tarde vai mandar eles embora, e a gente volta para fazer um Brasil muito bonito e para todo mundo viver bem. Vocês vão ver que o papai tinha razão e vão ficar satisfeitos com o que ele fez.
A carta está no livro “Ainda estou aqui”, de Marcelo Rubens Paiva - o livro que baseou o filme de Walter Salles com Fernanda Torres e Selton Mello, sucesso de bilheteria. Bem que algum editor poderia se animar para transformar a carta de Rubens Paiva aos filhos, como a de Gramsci, num belo livro infantil, sobre o Brasil.
E “depois me comunique as reações dos meninos”, das meninas, da meninada toda desse país.