O 'cagão' de 64 que virou o primeiro ditador da ditadura
“O Castello Branco disse pro Mourão que ele se precipitou, e o Mourão disse a ele: ‘Castello Branco, você é um medroso, é um…'”.
Ao telefone com o presidente João Goulart na noite do dia 31 de março de 1964, o general Amaury Kruel, comandante do II Exército, tentou barganhar a mobilização das suas tropas para resistir ao golpe em marcha. Kruel apresentou a Jango as seguinte condições: romper com os “comunistas”, demitir ministros “radicais” e pôr na ilegalidade a intersindical Comando Geral dos Trabalhadores.
Jango respondeu, antes de bater o telefone:
“General, eu não abandono os meus amigos. Se essas são as suas condições, eu não as examino. Prefiro ficar com as minhas origens. O senhor que fique com as suas convicções. Ponha as tropas na rua e traia abertamente.”
Naquela altura, o general Olímpio Mourão já estava com as tropas na rua, ou melhor, na estrada, deixando Juiz de Fora a caminho do Rio de Janeiro. Anos atrás, um coronel da reserva do Exército contou à Comissão da Verdade Vladimir Herzog, da Câmara de São Paulo, que Kruel traiu Jango não exatamente por suas convicções, mas por 1,2 milhão de dólares americanos, recebidos em seis malas, com intermediação de um grão-dirigente da Fiesp, num laboratório do Hospital Geral Militar de São Paulo.
O documentário O dia que durou 21 anos, de Camilo Galli Tavares, é fundamental para entender o papel dos EUA no golpe de 1964 contra o governo João Goulart e na instalação da ditadura civil-militar no Brasil. Dos EUA e do seu embaixador no Brasil na época, Lincoln Gordon.
O curioso de assistir a O dia que durou 21 anos, disponível aqui, no aniversário do golpe de 64 é que cada minuto do documentário parece contradizer o seu belo e terrível título; cada minuto do filme parece dizer que aquele 31 de março/1º de abril, de alguma maneira - de muitas -, dura até hoje.
Em telegrama enviado a Washington no dia 14 de março de 1964, Gordon informa Lyndon Johnson que “Goulart está definitivamente engajado numa campanha nacionalista para promover as reformas de base, que vão contra os interesses econômicos dos EUA”.
Exatos 54 anos depois, no dia 14 de março de 2018, Marielle Franco foi assassinada no Rio de Janeiro sob uma Intervenção Federal comandada por um ex-adido militar junto à embaixada do Brasil em Washington, além de militar saudoso dos 21 anos de ditadura: o general Walter Souza Braga Netto.
Quatro anos depois da execução de Marielle, em março de 2022, o ex-interventor, naquela altura ministro da Defesa do governo Bolsonaro, assinou uma ordem do dia para ser lida nos quartéis dizendo que “o Movimento de 31 de março de 1964 é um marco histórico da evolução política brasileira, pois refletiu os anseios e as aspirações da população da época”.
Filha do general Olympio Mourão, Laurita Mourão diz em O dia que durou 21 anos que seu pai “saiu pela estrada que ia de Juiz de Fora pro Rio de Janeiro disposto a morrer”. E conta que “o Castello Branco disse pro Mourão que ele se precipitou, e o Mourão disse a ele: ‘Castello Branco, você é um medroso, é um…’”.
Cheia de pudores, Laurita Mourão não completou a frase. Caso tenha visto o documentário só recentemente, na TV da sua “cela” de general na 1ª Divisão do Exército, Braga Netto deve ter dado um salto na poltrona, gritando e completando: “Essa eu sei! Essa eu sei! ‘Cagão’!”.
“Omissão e indecisão não cabem a um combatente. Cagão!”, disse o general Braga Netto a um outro integrante da “rataria” no final de 2022, por mensagem de texto, referindo-se ao então comandante do Exército, general Freire Gomes. Braga Netto tinha percebido que Freire Gomes não daria o passo sem volta, ainda que o Exército tenha dado todos os passos anteriores da trama golpista - da campanha de envenenamento da população contra as urnas eletrônicas à manutenção dos acampamentos golpistas na frente dos quartéis.
Quando a eleição de 1965 foi cancelada e o “mandato” do general Castello Branco foi prorrogado até 1967, Lyndon Johnson defendeu a manutenção de Castelo justificando que de outro modo a linha dura tomaria o poder. “Cagão” e suposto obstáculo à “rataria” de outrora, olha que o general Castello Branco poderia ter sido o general Freire Gomes do seu tempo.
Caso a quartelada de 64 tivesse fracassado, se o general Kruel tivesse cruzado baionetas com o general Mourão, o primeiro ditador da ditadura bem que poderia, quem diria, em vez disso, vai que cola, dizer que nunca embarcaria em aventuras, enquanto ao general Mourão restaria murmurar num aposento da 1ª Divisão do Exército: “omissão e indecisão não cabem a um combatente”.