No banco dos réus, não na cadeira do dragão
Nos tempos de Ustra, na maioria das vezes os alvos da “justiça”, por assim dizer, sequer chegavam a sentar no banco dos réus, sendo encaminhados, por vezes, direto para outro tipo de assento.
“Brasil e Argentina em campo hoje às 21h no Monumental de Núñez. Vamos torcer pelos nossos garotos voltarem com a vitória. Já no meu caso, o juiz apita contra antes mesmo do jogo começar… e ainda é o VAR, o bandeirinha, o técnico e o artilheiro do time adversário; tudo numa pessoa só”, tuitou Jair Bolsonaro nesta terça-feira, 25, de dentro do plenário da 1ª Turma do STF, antes mesmo de começar o julgamento que o tornou réu por golpe de Estado, e mais uma vez esperneando que seria vítima de uma “ditadura”.
Um pouco mais tarde, quando Moraes já concluía a leitura do seu relatório, ouviu-se lá de fora do plenário da 1ª Turma os gritos do desembargador aposentado Sebastião Coelho, jurista preferido dos bolsonaristas depois de Ives Gandra: “Autoritário! Autoritário!”.
Sebastião Coelho é advogado do ex-assessor especial de Bolsonaro na presidência Filipe Martins, também denunciado pela PGR por golpe de Estado. Recentemente, Martins foi condenado por fazer um gesto supremacista dentro do Senado do República.
O episódio do gesto supremacista aconteceu em 2021. Antes disso, em 2019, Filipe Martins saudou um dos filhos de Bolsonaro, Carlos, com um Ya hemos pasao (em português, “Já passamos”), frase que era usada pelo ditador espanhol Francisco Franco em resposta ao lema antifascista “Não passarão”. “Que a escória continue se mordendo de raiva ¡Ya hemos pasao!”, disse Martins a Carlos Bolsonaro, também no Twitter, agora X.
Até a manhã desta quarta-feira, 26, o banco dos réus da 1ª Turma do STF ainda estava vazio de golpistas que se dizem vítimas de “ditadura”, de autoritarismo. Convém jogar às fuças dos fãs de Franco, de Brilhante Ustra, etc, o que um banco dos réus ainda vazio significava para republicanos espanhóis na Espanha franquista - e para os democratas brasileiros na ditadura militar -, como lembrou Eduardo Galeano na pequena crônica A justiça nos tempos de Franco:
Acima, no alto do estrado, envergando sua toga negra, o presidente do tribunal. À direita, o advogado. À esquerda, o promotor. Degraus abaixo, o banco dos réus, ainda vazio. Um novo julgamento vai começar. Dirigindo-se ao meirinho, o juiz, Algonso Hernández Pardo, ordena:
“Faça o condenado entrar”.
Nos tempos de Franco, de Ustra, na maioria das vezes os alvos da “justiça”, por assim dizer, sequer chegavam a sentar no banco dos réus, sendo encaminhados, por vezes, direto para outro tipo de assento. Como a cirurgiã-dentista e militante Marlene de Souza Soccas, sequestrada na Avenida São João, em São Paulo, quando tinha 35 anos de idade, e “encaminhada imediatamente para a sala de torturas, e elas começaram, também, imediatamente”.
“Despida brutalmente pelos policiais, fui sentada na cadeira do dragão, sobre uma placa metálica, pés e mãos amarrados, fios elétricos ligados ao corpo tocando a língua, ouvidos, olhos, pulsos, seios e órgãos genitais”, relatou Marlene Soccas em carta a um juiz auditor datada do dia 24 de março de 1972 e reproduzida no livro Brasil: nunca mais.
“Geralmente, o básico era o choque”, relatou uma jovem Dilma Vana Rousseff em documento encontrado em 2012 pelo Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais entre mais de 700 processos de presos políticos mineiros analisados pela entidade.
Naquele mesmo ano, um dos torturadores de Dilma, o tenente-coronel reformado Maurício Lopes Lima, travou o seguinte diálogo com a repórter Tatiana Farah, do jornal O Globo:
FARAH: A presidente Dilma não foi torturada?
LIMA: Não sei, não sei, não sei.
FARAH: Não tinha a cadeira do dragão lá, o senhor nunca viu?
LIMA: Vi, opa! Mas a cadeira do dragão tem várias coisas. Ela tem por exemplo o intuito de deixar a pessoa... Uma das defesas da pessoa são os gestos. Estou me defendendo aqui, estou fazendo os gestos. Quando você prende mãos, a pessoa fica sem (defesa).
FARAH: Ah, coronel, por favor, o senhor acha que era isso que faziam na cadeira do dragão? Amarrar a pessoa?
Não obstante, nesta terça-feira, 25, um jornalista do Estadão achou razoável ensejar comparação entre a presença do homem que se diz vítima de “juiz que ainda é o VAR” no julgamento da aceitação de denúncia contra ele por golpe de Estado, sentado todo torto numa poltrona de veludo, cara enfiada no celular, e a militante do VAR-Palmares aprumada e altiva, cabeça erguida, após 22 dias de tortura e com 22 anos de idade, diante dos seus algozes na sede da Auditoria Militar do Rio de Janeiro.
“Bolsonaro evoca a coragem de Dilma ao comparecer frente aos seus algozes do STF”, é o título do artigo de Fabiano Lana no Estadão.
Quando “compareceu” ao seu julgamento numa ditadura de verdade, Dilma estava presa - perseguida política de verdade - por lutar contra um golpe de Estado, enquanto um golpe de Estado foi o que tentou aquele que foi até o Supremo assistir à si próprio ser colocado no banco dos réus, no momento exato em que Dilma é reeleita presidenta do Banco dos Brics.
Aquele que agora supostamente “evoca a coragem de Dilma” evocou concretamente, isto sim, a memória de outro torturador de Dilma Rousseff, o coronel Ustra, quando votou pelo impeachment da torturada, em 2016.
Nesta quarta, no Estadão e n’O Globo, Elio Gaspari, também ele, animou-se para comparar a tentativa de derrubada de um governo legítimo à luta contra a ditadura:
“Os novos manés esperam que a Justiça cobre um preço aos que tramaram o golpe de Estado de 2022/23 e, pelo andar da carruagem, as coisas não vão bem. As sentenças impostas à infantaria vândala do 8 de Janeiro levam água para aqueles que propagam o delírio de que o Brasil vive uma ditadura. Débora Rodrigues dos Santos, com seu batom, torna-se um símbolo espinhoso. Basta imaginar que o jovem que pichou ‘Abaixo a ditadura’ no Theatro Municipal do Rio em 1968 tivesse sido condenado a pena semelhante”.
Quem joga água no moinho do delírio de que os golpistas de hoje são vítimas de uma ditadura - às vezes escondendo-se, envergonhado, em terceira pessoa -, precisa de reforço de matéria como às crianças do ensino fundamental. Como ensina o livro A ditadura é assim, da Boitatá, selo infantil da Boitempo Editorial, sobre a justiça de Franco, Castello, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo:
“Aqueles que pensam de outro jeito e DIZEM o que pensam são malvistos e maltratados. E muitas vezes passam por situações muito ruins. Tem gente que precisa até sair do país porque não consegue se defender”.
Escancarada ou envergonhada, a ditadura é assim: mata.
Precisamente ao meio-dia e 27 minutos desta quarta, após longo inquérito policial, após denúncia do Ministério Público, julgamento da denúncia transmitido ao vivo em rede nacional, a 1ª Turma do STF formou maioria para aceitar a denúncia e Jair Bolsonaro foi finalmente posto no banco dos réus por tentativa de golpe de Estado, no curso do devido processo legal, em vez de sequestrado e imediatamente encaminhado para levar choques na língua e na genitália, num porão, numa cadeira do dragão.