Não está no filme, mas está no livro - o livro Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva: em 2006, aos 77 anos de idade - “nem tão velha assim”, escreve Marcelo -, Eunice Paiva foi ao Fórum João Mendes, na 5ª Vara de Família de São Paulo, na companhia dos seus filhos, para ser interditada por causa do Alzheimer.
No rito protocolar do Judiciário, o placar estava um a zero para doença, após Eunice ser perguntada pelo juiz em que ano estavam e Eunice olhar em desespero para Marcelo, sem saber a resposta. Um a zero para o Alzheimer. Foi quando o juiz emendou outra pergunta: “Como é o nome do presidente do Brasil?”.
Segue o relato de Marcelo Rubens Paiva:
Novamente, o olhar, desespero, vergonha, branco, deu branco, ela sofria demais, sofria sempre quando não reconhecia alguém e a pessoa perguntava, “Se lembra de mim?”, era desesperador não se lembrar se já se banhara, esquecer os remédios, a panela acesa no fogão, não ver a fogueira no alto do morro para voltar à costa com o barco cheio de camarão, a pesca realizada, a missão cumprida.
O presidente do Brasil, mãe, você o conhece pessoalmente. Ele já foi em casa duas vezes, quando ainda era líder sindical. Você esteve na fundação do partido dele. Esteve ao seu lado na luta pela Anistia, pelas Diretas, pela redemocratização. Até queriam você como suplente do senador do partido dele. Ele foi em casa numa noite em que estava uma bagunça. Eu jogava War na sala com amigos. Tínhamos fumado maconha. Ríamos alto. Você, no quarto. A Veroca o trouxe com o Geraldinho. Ele entrou, e gargalhamos, pois estávamos bem chapados. Ele nos cumprimentou, riu também, deve ter sentido o cheiro da rua. Claro que não oferecemos. Ele entrou e foi conversar com você sobre os rumos da política brasileira, que se reorganizava, saía da ditadura. Ficamos nos perguntando se deveríamos ou não oferecer maconha ao metalúrgico líder sindical. Melhor não. Naquela época, eu fumava maconha em casa com os amigos. No quarto, na varanda, nunca na frente. Depois de você ter descoberto que eu fumava, depois de ter descoberto que meus amigos fumavam, depois de ter descoberto que seus amigos, e amigos que fez já viúva, fumavam, depois de seus amigos que fumavam terem lhe oferecido, e de você recusar, por educação, por timidez, e ter dado uns pegas, curiosa… e não ter sentido nada, você viu que não era coisa do demônio. Liberou.
A memória não é a capacidade de organizar e classificar recordações em arquivos. Não existem arquivos. A acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam, deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência. Uma fogueira no alto ajudaria. Mas ela se apaga com o tempo. E não conseguimos navegar de volta para casa.
O juiz esperava a resposta. Veroca, como se falasse com uma criança, ainda tentou:
“Mamãe, você conhece ele, é o Lu…”
Não adiantou. Eunice Paiva não conseguiu lembrar. Dois a zero para a doença.
Isto o filme mostra: em 2014, Eunice Paiva/Fernanda Montenegro aparece numa cadeira de rodas, na frente de uma TV, sofrida, castigada, apagada pelo Alzheimer avançado. E na TV começa a passar a notícia da apresentação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade - com os cumprimentos de Dilma Rousseff -, e as fotos de Vladimir Herzog, Stuart Angel.
E a foto de Rubens Paiva.
E a notícia na TV de um lampejo de enfrentamento do passado e a foto de Rubens Paiva devolvem por um instante ao rosto de Eunice, ao seu semblante, ao seu olhar, aquilo que no fim das contas é o que as ditaduras tentam extinguir na gente, mas que ainda estava ali: a sediciosa, perigosa, radiante centelha da lucidez.
O dia 31 de março está prestes. Na última quinta-feira, numa reunião do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, Valter Pomar pediu a palavra para solicitar a inclusão na pauta de pelo menos um tema político: “o que o partido fará nos dias 31 de março e 1º de abril, datas do golpe militar de 1964?”, já que no ano passado, nos 60 anos do golpe, partido e governo Lu… deixaram a data passar batida.
Deu branco.
Que neste 31 de março de 2025 a gente consiga - antes tarde do que tarde demais - distinguir a fogueira no alto do morro.Inscreva-se no COME ANANÁS para receber nossas matérias por e-mail. Considere fazer uma assinatura paga em apoio ao nosso trabalho. Já é assinante gratuito? Considere mudar para a assinatura paga. Você também pode fazer uma contribuição única para o site, com cartão ou Pix. Apoie o jornalismo de fato independente. A Democracia agradece.
Que texto lindo
Muito importante lembrança, contra esse Alzheimer nacional.