Je suis Gonet?
Bobeou, e lá vem Gonet na batida de quem votou contra reparações aos familiares de Zuzu Angel, Marighella e Lamarca.
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, pediu na última quinta-feira, 27, o arquivamento do inquérito da Polícia Federal contra Jair Bolsonaro no caso das fraudes em cartões de vacinação contra a covid-19. Nesta sexta-feira, 28, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, atendeu a jato o pedido e arquivou o inquérito.
O despacho da PGR saiu um dia após a Primeira Turma do STF tornar Bolsonaro réu por tentativa de golpe de Estado e mais de um ano após a PF indiciar Bolsonaro pelos cartões fraudulentos de vacinação, o que data precisamente do dia 19 de março de 2024.
Vamos repetir: mais de um ano.
Neste longo tempo, a denúncia de Bolsonaro ao STF, pela PGR, pela fraude nos cartões, era dada como certa, ainda que várias vezes adiada: Paulo Gonet, segundo a crônica jornalística, preferiu deixar passar o primeiro turno das eleições municipais do ano passado, para a denúncia dada como certa não “contaminar” as eleições. Depois, preferiu esperar o segundo turno. Na época, na Folha de S. Paulo, Conrado Hubner Mendes chegou a protestar nos seguintes termos: “se bobear, vai deixar passar as eleições americanas”.
Bobeou, e Gonet deixou passar as eleições nos EUA, vencidas por Donald Trump.
Neste longo, longo tempo, protestamos todos os do lado cá - da Democracia, do Estado Democrático de Direito - contra a leniência paquidérmica de Paulo Gonet, principalmente quando o bolsonarismo deitou e rolou nas eleições municipais que o “professor Paulo Gonet” não quis “contaminar”.
Agora, subitamente, muitos de nós convertem-se em apóstolos do “professor Paulo Gonet” quando ele afirma junto ao STF que não há indícios mínimos no trabalho da PF de que foi Bolsonaro quem deu a ordem para seu ajudante de ordens, Mauro Cid, arranjar cartões falsos de imunização contra o vírus Sars-Cov-2.
Súbito, confiamos em Paulo Gonet quando Gonet diz que a PF conseguiu contra Bolsonaro, neste caso, apenas a delação de Cid. Para avalizar Gonet, nos animamos para repetir que, pela lei, delação é meio de prova, não a prova em si. E se o inquérito da PF traz provas para além da delação de Cid - e traz -, ignoramos o “detalhe” solenemente, para não macular a capa do mais novo - apenas o mais novo - herói nacional.
A troco de quê?
A troco de que o arquivamento do inquérito dos cartões falsos de vacinação pode fortalecer simbolicamente, politicamente, a ação penal contra Bolsonaro por tentativa de golpe. Neste sentido: “vejam, parlamentares bolsonaristas, mídia brasileira e congressistas do Partido Republicano dos Estados Unidos da América: somos justos e imparciais. Aqui de fato só tem delação, mas ali, no caso principal, não tem só isso não”.
Por outro lado, o arquivamento pode enfraquecer, objetivamente, juridicamente, a ação penal contra Bolsonaro por tentativa de golpe no ponto capital da denúncia da PGR acolhida pelo STF: o vínculo entre todo o desenrolar da trama golpista de 2022 e o 8 de janeiro de 2023, justamente o ponto que os corações mais indulgentes da mídia indicam como carente de produção de novas provas no curso da ação penal.
“O presente eixo relacionado ao uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens ilícitas, no caso a ‘Inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde para falsificação de cartões de vacina’, pode ter sido utilizado pelo grupo para permitir que seus integrantes, após a tentativa inicial de Golpe de Estado, pudessem ter à disposição os documentos necessários para cumprir eventuais requisitos legais para entrada e permanência no exterior (cartão de vacina), aguardando a conclusão dos atos relacionados a nova tentativa de Golpe de Estado que eclodiu no dia 08 de janeiro de 2023”, diz o relatório da PF que Alexandre de Moraes acaba de enterrar, a pedido de Paulo Gonet.
Ato contínuo, Gonet pediu ao STF prisão domiciliar para Débora Rodrigues, a golpista que teria apenas usado de forma inadequada seu batom bastão no 8/1. De novo de bate pronto - e batendo diferente sob a toga, na batida de Luiz Fux, um coração - Alexandre de Moraes acolheu o pedido do PGR sobre Débora Rodrigues, pedra angular da grita bolsonarista por anistia, de resto abrindo precedente para relaxamentos mil, para golpistas mil, de penas de privação de liberdade.
Na última terça-feira, 25, a jornalista Hildegard Angel foi ao STF assistir ao julgamento da denúncia de Paulo Gonet contra os cabeças do golpe mais recente. Hildegard talvez não tenha atentado para a data, talvez tenha: exatos 27 anos antes, no dia 25 de março de 1998, a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos deferiu reparação indenizatória do Estado brasileiro aos familiares da mãe de Hildegard, a estilista Zuzu Angel, assassinada pela ditadura.
O placar do julgamento desta semana na Primeira Turma foi cinco a zero contra os golpistas. O placar daquela votação de 1998 na Comissão de Mortos e Desaparecidos foi quatro a três. Votaram contra a reparação a Zuzu Angel o general Oswaldo Pereira Gomes, representante da caserna na comissão; João Grandino Rodas, recentemente reitor da USP; e Paulo Gustavo Gonet Branco.
Hildegard pode até não ter atentado para a data, mas sabe - ela sim - quem é Paulo Gonet.
Representando o MPF na Comissão de Mortos e Desaparecidos, Gonet alinhou com o general Oswaldo Pereira Gomes para votar contra o pagamento de indenizações aos familiares de pelo menos outras 14 vítimas da ditadura, além de Zuzu Angel. Entre elas, dois Carlos: Marighella e Lamarca.
Entre elas, Neide Alves dos Santos. Ligada ao PCB, Neide foi morta com queimaduras em 70% do corpo no dia 7 de janeiro de 1976, no meio da Operação Radar, de caça a militantes do Partidão, e no intervalo de três meses entre as mortes de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, suicidados pela ditadura no xadrez do DOI/CODI. O laudo policial da morte de Neide apontou “suicídio de mulher mediante fogo posto às vestes”.
Gonet foi o relator do caso. Aferrado a uma alínea da Lei 9.140/95 - a Lei dos Desaparecidos - que previa indenização só por morte “em dependências policiais ou assemelhadas”, o mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Essex resolveu que “a morte por ateamento de fogo, em si mesma, em praça pública, não preenche os requisitos da lei”.
Estupefatos, outros membros da comissão não desistiram do caso, e a Gonet restou forçoso mudar seu voto quando apareceram novas provas, inclusive um laudo de necropsia da Secretaria de Segurança de São Paulo com o nome de Neide assinalado pela ditadura com a letra T, de "terrorista".
“Não devemos nos envergonhar dos poucos erros cometidos; até a mancha da violência ilegal foi diminuta, como verifiquei nos trabalhos da comissão sobre os desaparecidos”, disse o general Oswaldo Pereira Gomes, dupla de Gonet na comissão, sobre a ditadura, em artigo que a Folha aceitou publicar no dia 31 de março de 1999.
Em novembro de 2023, dezenas de entidades da sociedade civil enviaram uma carta conjunta ao presidente Lula fazendo um apelo para que o presidente não indicasse Paulo Gonet para a PGR. A carta citava a atuação de Gonet na Comissão de Mortos e Desaparecidos e dizia:
“Sr. Presidente! Somente esses fatos já deveriam ser suficientes para excluir o subprocurador Paulo Gonet da lista de candidatos à PGR. Em 1990, o Brasil já havia saído da ditadura e não havia nada que o obrigasse a assumir posições tão flagrantemente contrárias à verdade dos fatos históricos e à defesa dos direitos humanos e da democracia. Votou de forma contrária a esses valores por livre e espontânea vontade, ou seja, por convicção. Uma pessoa com essas convicções não apresenta credenciais para a defesa intransigente da democracia que os tempos atuais estão a exigir dos agentes públicos e, com muito maior rigor, de ocupantes de cargos tão importantes e estratégicos como a Procuradoria Geral da República”.
Ou seja: Paulo Gonet não é confiável para a defesa intransigente da Democracia. Porém, em mais um capítulo de nosso proverbial bate-cabeça, de repente confiamos que Paulo Gonet, entre outros, quer o mesmo que a gente: a derrota de verdade do golpismo.
Confiamos, quando, diante das últimas excelentíssimas movimentações, seria o caso de dizermos como Quintus em Tito Andrônico:
“Meu coração suspeita que há algo mais do que os meus olhos podem enxergar”.
Será que esta construindo um tipo de jurisprudência para um mesmo acusado ?
Excelente, fundamental artigo, muito oportuno.