Esperando Gonet: uma tragédia em dois turnos
Bolsonaro continua impune, como seguirão previamente anistiados neste país os agentes públicos que, ocupando postos-chave da República, fazem de gato e sapato os seus deveres funcionais.
O repórter Mark Rezendes, do Boston Globe, depara com um bom católico no balcão de um fórum de Massachusetts e não consegue acessar documentos públicos sobre casos de pedofilia na arquidiocese do cardeal Bernard Law. Rezendes, então, procura um juiz para fazer valer a lei. A cena é do filme Spotlight.
No gabinete do meritíssimo, sua excelência constata que, de fato, são documentos públicos, mas de repente lhe baixa a tentação de se autoproclamar Engavetador-Geral de Boston, e ele pergunta a Mark Rezendes: “onde fica a responsabilidade editorial ao publicar documentos dessa natureza?”.
O repórter do Globe responde de bate-pronto, com outra pergunta: “onde fica a responsabilidade editorial ao não publicá-los?”.
Paulo Gonet Branco não é Geraldo Brindeiro Gomm, o Engavetador-Geral da República, de Fernando Henrique Cardoso. Não. O caso é inédito: Paulo Gonet atua como Procrastinador-Geral da República em favor do antecessor e oponente do presidente da República que o nomeou para o cargo.
Mas não um antecessor e oponente qualquer: Jair Bolsonaro tentou dar um golpe de Estado após perder a eleição, antes da posse de Lula, não conseguiu e fugiu para a Flórida num avião da FAB e com os bolsos carregados de atestados de vacina falsos e joias roubadas do acervo público. Da Flórida, da casa de um lutador de MMA, assistiu à tentativa derradeira do bolsonarismo militar de reocupação do poder via mata-leão, no dia 8 de janeiro de 2023.
Derrotado o golpe de Estado, a história era que Bolsonaro só seria denunciado pelo Ministério Público ao STF após Augusto Aras deixar a PGR. No último 26 de setembro fez um ano que Aras foi rendido por Gonet. Desde antes disso já circulava o zum-zum de que Gonet deixaria para denunciar Bolsonaro só “depois das eleições”, “para evitar impacto político”, e só por um ou dois dos seus múltiplos crimes.
Como quem diz: “onde fica a responsabilidade de oferecer denúncias dessa natureza antes de eleições”?
Mark Rezendes devolveria assim, sem pestanejar: “onde fica a responsabilidade do PGR ao não cumprir com seus deveres funcionais diante de inquéritos concluídos e recheados de provas contundentes?”.
No primeiro turno das eleições municipais, o PL de Jair Bolsonaro fez 523 prefeituras, 10 delas nas cidades com mais de 200 mil eleitores, resolvendo a parada logo no primeiro turno, inclusive em duas capitais - Maceió e Rio Branco. Das 52 cidades com mais de 200 mil eleitores onde haverá segundo turno, o partido está na disputa em 23, quase a metade, sendo nove, nada menos que nove capitais.
O zum-zum de que Paulo Gonet iria denunciar Bolsonaro “após as eleições”, que circulava semanas atrás, agora virou o zum-zum de que a denúncia virá mais especificamente “após o segundo turno”. Como disse Conrado Hübner Mendes nesta quarta-feira, 9, na Folha, “se bobear, vai também esperar a eleição americana”.
Paulo Gonet é um jurista experiente. Há 30 anos, em meados do anos 90, ele já ocupava o posto de representante do Ministério Público Federal na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Representando o MP, Gonet alinhou com o representante das Forças Armadas na comissão, general Oswaldo Pereira Gomes, para votar contra o pagamento de indenizações aos familiares de pelo menos 15 vítimas da ditadura, entre elas Zuzu Angel, Carlos Marighella e Carlos Lamarca.
Entre elas Neide Alves dos Santos. Ligada ao PCB, Neide foi morta com queimaduras em 70% do corpo no dia 7 de janeiro de 1976, no meio da Operação Radar, de caça a militantes do Partidão, e no intervalo de três meses entre as mortes de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, suicidados pela ditadura no xadrez do DOI/CODI. O laudo policial da morte de Neide apontou “suicídio de mulher mediante fogo posto às vestes”.
Gonet foi o relator do caso. Aferrado a uma alínea da Lei 9.140/95 - a Lei dos Desaparecidos - que previa indenização só por morte “em dependências policiais ou assemelhadas”, o mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Essex resolveu que “a morte por ateamento de fogo, em si mesma, em praça pública, não preenche os requisitos da lei”.
Estupefatos, outros membros da comissão não desistiram do caso, e a Gonet restou forçoso mudar seu voto quando apareceram novas provas, inclusive um laudo de necropsia da Secretaria de Segurança de São Paulo com o nome de Neide assinalado com a letra T, de "terrorista".
Bolsonaro continua impune, como seguirão previamente anistiados neste país os agentes públicos que, ocupando postos-chave da República, fazem de gato e sapato as suas funções, transformando seus deveres funcionais em bastõezinhos de malabares político.
Jurista experiente, conhecedor dos incisos e alíneas, Gonet sabe bem que a leniência paquidérmica em praça pública, em si mesma, não preenche os requisitos da lei.