Dois lobbies do batom
Em vez de força política por direitos, demandas de gênero, Democracia, como na Constituinte, o batom virou arma do contrário disso tudo nas mãos da cabeleireira Débora Rodrigues no 8/1.
Corria o ano de 1987. Transcorriam os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Dos 512 deputados constituintes, apenas 26 eram mulheres. De Anna Rattes a Cristina Tavares; de Bete Medes a Moema Santiago; da filha de Juscelino Kubitschek, Márcia Kubitschek, à filha da mulher lavadeira das roupas de Juscelino, uma jovem indômita chamada Benedita da Silva.
Na época, as 26 deputadas constituintes uniram-se ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) para defender as pautas de gênero na assembleia: uma “plataforma da mulher” consolidada na Carta das Mulheres aos Constituintes, documento entregue ao presidente do colegiado, Ulysses Guimarães, no dia 26 de março de 1987.
A palavra de ordem da dobradinha entre as deputadas constituintes e o CNDM era: “Constituinte pra valer tem que ter direitos da mulher”.
Conta a pedagoga Maria Aparecida Schumaher, a Schuma, então secretária executiva do CNDM, sobre o que aconteceu num belo dia, num dos périplos diários das deputadas e representantes do conselho pelos gabinetes, comissões e subcomissões da Constituinte:
“Um dia, nós estávamos chegando e tinha três ou quatro deputados vindo no mesmo corredor. E nós escutamos eles dizerem assim: ‘ih, lá vem o vem o lobby do batom…’”
O depoimento de Schuma está no documentário com este nome, Lobby do batom, de Gabriela Gastal. O filme, disponível no Globoplay, mostra como as deputadas e funcionárias do CNDM pensaram até em mandar outra carta a Ulysses, esta para denunciar o deboche - “lobby do batom”. Uma delas, no entanto, fez a seguinte ponderação:
“Mas que esse é um nome forte, isso é”.
“Eu acho que a gente devia fazer o contrário. Eu acho que a gente devia assumir esse nome e dar uma força política pra ele”, emendou Schuma junto às companheiras.
E assim foi:
Graças à atuação do lobby do batom, nada menos que 85% das reivindicações da Carta das Mulheres aos Constituintes foram aprovadas na Constituição de 1988, a começar pelo artigo 5º, inciso I: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
A terminar com vitória sobre forças religiosas que queriam pôr no texto constitucional a total criminalização do aborto.
O documentário Lobby do batom foi filmado entre 2021 e 2022, período final do governo Bolsonaro, ou seja, período de conspiração para golpe de Estado.
“A Constituição é o segundo pacto social que o Brasil fez, que é esse que o governo atual está tentando destruir”, disse a economista Hildete Pereira, ex-conselheira do CNDM, no documentário Lobby do batom.
“Eu acho que o que há de melhor na nossa Constituição, como garantia do sistema democrático e do Estado Democrático de direito, está em risco”, disse a advogada Comba Marques, ex-assessora do CNDM, à documentarista Gabriela Gastal.
“Estamos vivendo um período de retrocesso em relação aos direitos humanos”, disse no filme a ex-deputada constituinte Anna Rattes.
“Nesse momento, reviver o lobby do batom é muito importante”, disse a ex-deputada constituinte e hoje deputada federal Benedita da Silva.
Há que se ter cuidado com os desejos.
No final da semana passada, ganhou força no Brasil uma nova pressão tendo o cosmético de pivô. Porém, uma pressão de outro tipo, inversa, impulsionada por outra dobradinha: Luiz Fux/Paulo Gonet.
Batom 142
Em vez de força política a favor de direitos, das demandas de gênero, da Democracia, o batom virou arma do contrário disso tudo nas mãos da cabeleireira Débora Rodrigues no dia 8 de janeiro de 2023. Com ele, Débora inscreveu, lavrou, registrou na estátua da Justiça sua participação na tentativa de golpe contra o presidente eleito, contra as mulheres, contra os direitos humanos, contra a Constituição de 1988 e pela interpretação degenerada do artigo 142 da Constituição.
No âmbito do novo lobby, coube ao PGR Paulo Gonet entregar a Alexandre de Moraes uma espécie de Carta dos Golpistas a Xandão, na forma de pedido de prisão domiciliar para Débora Rodrigues enquanto ela aguarda julgamento por, como se diz, “apenas escrever na estátua com batom”. Moraes acolheu o pedido. Se concorda ou não concorda com ele, no íntimo xandista, pouco importa. A jato, julgou-o justo, como agora consta nos autos, na jurisprudência.
Nesta segunda-feira, 31, Débora Rodrigues comemora em casa, com a família, os 61 anos do golpe empresarial-militar de 1964.
A liberdade para Débora veio na sequência imediata de outro pedido de Gonet prontamente atendido por Moraes: o arquivamento do inquérito contra Bolsonaro por fraude em cartões de vacinação contra a covid-19. O otimismo democrático da vontade enxerga numa e noutra movimentações verdadeiras “jogadas de mestre” contra a grita bolsonarista de “ditadura da toga”.
Qual será a próxima jogada magistral, já que ninguém falou ainda em xeque-mate no fantasma de mais uma anistia? Se bobear, se bobearmos - tipo marcando atos contra a anistia fadados ao fracasso -, o novo “lobby do batom” - adulterado, às avessas, de pernas pro ar em relação ao original - acaba vendo satisfeitas, também ele, 85% das suas reivindicações.