Celeste e a Revolução: os gestos que ninguém planeja, mas vivem cá dentro da gente
Morreu nesta sexta-feira, 15, em Leiria, a mulher sem a qual a Revolução dos Cravos seria "só" o 25 de Abril.
Neste ano, Portugal comemorou o cinquentenário do 25 de Abril - a Revolução dos Cravos. Não fosse uma garçonete de um restaurante no Marquês, em Lisboa, a revolução portuguesa, a vitória do povo português sobre o fascismo, ela teria um nome só. Uma festa bonita, pá, mas sem cravos. Imagine.
Celeste Cairo morreu nesta sexta-feira, 15, aos 91 anos de idade. Ela certamente sabia do recrudescimento do fascismo e da xenofobia em Portugal. Não se sabe se chegou a ter conhecimento de que no dia 2 de novembro aconteceu um encontro neonazista, com 100 neonazistas, em plena Assembleia Municipal de Lisboa.
Come Ananás reproduz abaixo um texto sobre Celeste Caeiro, sobre os Cravos, escrito por Fernando Frederico, da Associação Salgueiro Maia. No texto, escrito em 2023, Frederico chamava a atenção para a necessidade de maior reconhecimento de Dona Celeste como símbolo da entrega do povo português à Revolução.
“O tempo urge. Celeste nasceu em 1933”.
Nesta sexta, com Celeste morta, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, anunciou uma condecoração póstuma…
D. Celeste Caeiro
Fernando Frederico
Em Lisboa, o dia 25 de abril de 1974 parecia um dia normal, com muito trânsito e muita gente apressada, na rua, logo de manhã. A nota discordante era a excessiva presença de tropa, em atitude de se exercitar para a guerra urbana. Este inusitado panorama prendia a atenção dos transeuntes, que abrandavam o passo e paravam mesmo, para satisfazer a curiosidade.
Seria um exercício? Seria um treino para projetar uma força no estrangeiro? Seria um filme? – perguntavam-se entre si e até abordando os militares, completamente equipados e compenetrados no cumprimento da missão que os levara ali: o derrube do regime ditatorial.
– Ah! Afinal é uma revolução – comentavam incrédulos – A sério?! Eh, malta: é mesmo uma revolução! É uma revolução! Desta vez é que isto vai dar a volta.
E crescia o rumor, espalhando pela cidade o entusiasmo de que, finalmente, estava a acontecer aquilo por que tanto ansiavam há tantos anos e que a Primavera Marcelista parecia ter querido debelar, para, afinal, ter ficado só pelo “parecer”.
Na Rua Braancamp, junto ao Marquês de Pombal, a empregada de mesa do restaurante “Franjinhas” acabava de ser dispensada pelo seu patrão que, avisado sobre a revolução, resolveu muito sensatamente não abrir o estabelecimento, precisamente no dia em que comemorava um ano de abertura e tinha encomendado imensos cravos, vermelhos e brancos, para oferecer à clientela.
Celeste Caeiro saiu do restaurante com uma braçada de flores, sem saber muito bem o que lhes faria; mas o frémito da alegria popular não sugeria o regresso a casa, antes o participar no que quer que estava a acontecer. Tantos carros com tanta tropa! Tantos mirones vidrados nas fardas! Armas a sério, empunhadas por homens a sério. Movimento. Alegria. Entusiasmo. Partilha.
– Senhora! Por acaso tem um cigarro que me dê? – atirou-lhe um soldado, para fazer conversa.
– Não. Não fumo – e quase corou, pesarosa de não poder dar algo de si a quem se estava a dar em pleno, ao país, ao povo, sem nada pedir… ou talvez apenas um cigarro, para sedar a tensão do momento, da incerteza que envolvia a aventura de mudar o regime, de conquistar a liberdade.
De repente, por instinto, por gratidão, por amor, Celeste separou um cravo do molho e estendeu-o ao soldado. O quê? Em 1974? Uma mulher oferece uma flor a um homem, à frente de toda a gente? E o homem aceita? Como é que, com a Revolução ainda mal começada, estes dois já perceberam que vem aí a liberdade e a igualdade de género? A vida parece um romance, não é?
O soldado colocou o cravo no cano da sua espingarda, inutilizando o seu poder de tiro, mas, ao mesmo tempo, demonstrando a vontade de não a disparar; e o gesto foi repetido pelos outros soldados, até onde o molho de cravos da Celeste pôde chegar.
São gestos que ninguém planeia, mas que vivem cá dentro da gente e explodem de repente sem bem se saber porquê, como fogo de artifício que se espalha no ar e ilumina a noite. Também as floristas do Rossio, sabendo do caso, aderiram à loucura de distribuir cravos por soldados e populares sem cuidar do destino da sua fazenda, ou cuidando bem que estavam vivendo momentos de euforia irrepetíveis que bem as compensava da perda. É assim o povo em ação! Generoso, responsável, valente, altruísta.
Chovia gente de todo o lado, escorrendo de enxurrada pelas ruas estreitas do Carmo. Era impensável promover alguma ação militar com fogo real no meio da multidão; mas a multidão era a mais adequada arma para derrubar o regime. Nem mesmo a estupidez dos sicários da polícia política conseguiu manchar a alvura dos acontecimentos. O povo saiu à rua. Veio aprovar e agradecer a Revolução dos Cravos. Ninguém tinha dúvidas de que começara ali uma nova era. Respirava-se fraternidade, liberdade, civismo, amor. Que bom seria distribuir medalhas a este povo, como se distribuíram os cravos.
Mas se não é possível condecorar todo o povo, é sempre possível condecorar um símbolo desse povo e da sua entrega generosa à revolução, como argumento decisivo que a fez triunfar; e se há uma pessoa que pode simbolizar a multidão, na sua simplicidade, humildade, lhaneza é, por certo a D. Celeste Caeiro, que protagonizou o gesto que deu nome à revolução, que deu ao país aquilo que podia dar, como fizeram os heróis desse dia, uns que já receberam o justo galardão, outros que ainda esperam por um sinal do nosso reconhecimento. O tempo urge. Celeste nasceu em 1933.