'Caso Guadalupe': genealogia da impunidade para assassinos no Superior Tribunal Militar
Três generais, dois brigadeiros e um almirante livraram da prisão um tenente, um sargento, um cabo e quatro soldados do Exército que fuzilaram um músico preto e um catador no Rio de Janeiro.
O Superior Tribunal Militar (STM) absolveu na última quarta-feira, 18, um tenente, um sargento, um cabo e quatro soldados do Exército Brasileiro pelo assassinato do músico Evaldo Rosa, no dia 7 de abril de 2019, no Rio de Janeiro, e reduziu em 10 vezes as penas dos mesmos militares pelo homicídio, no mesmo dia, do catador de recicláveis Luciano Macedo.
Evaldo, que era preto, e Luciano, que era pardo, foram mortos pelos militares do Exército no bairro de Guadalupe, no Rio, próximo à favela do Muquiço. O carro onde Evaldo estava com sua esposa, seu filho pequeno e seu sogro, todos a caminho de um chá de bebê, foi alvo de mais de 200 tiros de fuzil disparados pelos militares. Ele morreu na hora. Luciano ainda tentou ajudá-lo, mas também foi crivado de balas e morreu dias depois, num hospital.
Os militares tinham sido condenados pela primeira instância da Justiça Militar a penas entre 28 e 31 anos de prisão em regime fechado. No STM, segunda e última instância da judicatura castrense, foram absolvidos da execução de Evaldo e tiveram as penas por matarem Luciano reduzidas para três anos em regime aberto. Os “militares jovens”, na classificação do presidente do STM, tenente-brigadeiro do ar Joseli Camelo, apenas teriam confundido o músico e o catador com assaltantes.
Confusos, não tiveram intenção de matar…
O tenente, o sargento, o cabo e os soldados do Exército tiveram seus crimes acobertados no STM por oito votos a seis. Votaram para livrá-los da prisão três generais, todos quatro estrelas; dois tenentes-brigadeiros do ar; e um almirante de esquadra, além de dois civis. Um dos generais, o ex-comandante da Aman Marco Antonio de Farias, chegou a dizer antes de votar que era um absurdo o STM “julgando pessoas de bem” com os “verdadeiros bandidos” à solta no Rio.
‘Crime impossível’
Pondo em dúvida o laudo necrológico do cadáver de Evaldo, que apontou que o músico foi morto com nove tiros de fuzil disparados pelos militares - sete no peito, dois na cabeça -, o relator da ação no STM, o tenente-brigadeiro do ar Carlos Augusto Amaral Oliveira, votou dizendo que não era possível determinar a origem do disparo fatal. Segundo o relator, Evaldo já podia estar morto, vitimado em suposta troca de tiros anterior entre os militares e os verdadeiros assaltantes. Sem constrangimento, mesmo com sete balas no peito de Evaldo, duas balas na cabeça de Evaldo, o brigadeiro chegou a falar em “crime impossível”.
No curso do “Caso Guadalupe” no STM, Carlos Augusto Amaral negou a participação da ong Conectas Direitos Humanos no caso como Amicus Curiae (“amigo da corte”, terceiro que pode fornecer informações importantes sobre um processo). Igualmente sem acanhamento, o brigadeiro justificou sua decisão dizendo que os assassinatos de Evaldo e Luciano, de grande comoção pública, reveladores do perfilamento racial no Rio, no Brasil, não teriam “repercussão social”.
Seguido por outros sete ministros do STM no “Caso Guadalupe”, o brigadeiro Carlos Augusto Amaral é precedido por extensa linhagem de armas. Ele é filho de um general de brigada e sobrinho de um almirante de esquadra, de um major e de um coronel. Coronéis são também seu irmão e seu sogro. Em 2020, quando foi sabatinado no Senado para ingressar no STM, disse aos senadores que tinha “excelentes referências na vida militar com o meu avô materno, general Itiberê”.
‘Rápida e violentamente’
Um jovem Carlos Augusto tinha oito anos de idade - a mesma do filho de Evaldo Rosa no dia em que o pai foi morto -, quando, em dezembro de 1968, horas após a edição do AI-5 pela ditadura, o então comandante da 4ª Região Militar do Exército Brasileiro, general Itiberê Gouvêa do Amaral, redigiu um informe aos seus subordinados dando a ordem de que prisões de "políticos, pessoas de relevo e jornalistas" deveriam ser autorizadas pelo presidente da República. O documento foi revelado em 2013 pela Comissão Nacional da Verdade (CMV).
O general Itiberê também foi responsável pela “Instrução para Execução da Censura”, datada da mesma época, ou seja, dos dias subsequentes ao AI-5, e também revelada pela CNV em 2013. Neste outro documento, o general instruiu sobre o que fazer no “campo psicossocial” para censurar a imprensa.
“É vedado divulgar notícias referente à prisões ou atos decorrente de censura, com exceção das fornecidas ou autorizadas por fontes oficiais”, dizia a instrução. O general proibiu também “notícias sobre atividades estudantis ou subversão, movimentos operários e greves”, e determinou que “a censura deve ser contínua, durante 24 horas do dia”.
No relatório da Comissão Nacional da Verdade dos Jornalistas Brasileiros, produzido pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), consta que:
“Decorridos poucos dias após o golpe comandado por militares, de 1º de abril de 1964, o então editor do jornal Gazeta de Notícias, Dorian Sampaio, foi intimado pelo general Itiberê Gouvêa do Amaral, comandante da 10ª Região Militar, em Fortaleza, a comparecer à sede daquele regimento militar. Sem constrangimento, e direto ao assunto, o militar informou ao jornalista que soubera, por meio de uma carta anônima, que ele acolhia ‘elementos comunistas’ em sua casa”.
Sobre as ações repressivas da ditadura contra “elementos comunistas”, em um terceiro documento trazido à tona pela CNV, este de dezembro de 1970, o general Itiberê Amaral, avô e referência para o ministro do STM Carlos Augusto Amaral, garantiu que o 1º Exército asseguraria a ordem interna “esmagando rápida e violentamente qualquer movimento subversivo”.
‘Essência dos valores militares’
Ainda sobre a genealogia da impunidade para assassinos de brasileiros pretos e pardos na Justiça Militar do Brasil, em 2018, no governo Michel Temer, o primeiro militar feito ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna, nomeou o brigadeiro Carlos Augusto Amaral secretário-geral da pasta. Depois, em 2019, Jair Bolsonaro nomeou Carlos Augusto Amaral chefe do Estado-Maior da Aeronáutica. Em 2020, Bolsonaro indicou-o para o STM, acatando sugestão do sucessor de Silva e Luna na Defesa, general Fernando Azevedo e Silva.
Azevedo e Silva, por seu coturno, recebera o nome de Carlos Augusto Amaral do então comandante da Aeronáutica, Antonio Carlos Bermudez. No início do governo Bolsonaro, o general Azevedo e Silva, o brigadeiro Bermudez e os então comandantes do Exército e da Marinha, Edson Pujol e Ilques Barbosa, assinaram - constrangidos? Orgulhosos? - uma ordem do dia para ser lida nos quartéis classificando o golpe de 1964 como “um marco para a democracia brasileira”.
Em outubro de 2020, coube a outro tenente-brigadeiro do ar do STM, Carlos Vuyk de Aquino, proferir uma “saudação de júbilo” pela posse de Carlos Augusto Amaral no STM. Naquela feita, disse assim o brigadeiro que viria a seguir o colega de arma e neto do general Itiberê na impunidade para os assassinos de Evaldo Rosa e Luciano Macedo:
“Nascido em família vocacionada para a essência dos valores militares, com exemplos edificantes que pautaram a sua personalidade em formação, o jovem Carlos Augusto divisou para si cumes que mereciam ser conquistados e ingressou na Força Aérea Brasileira para dotar de realidade o seu sonho de voar”.