Cadente, embora não estrela
"Seria agora o momento de remontar tudo, até onde fosse necessário chegar para descobrir o caruncho original e esclarecer as responsabilidades".
O conto “Cadeira”, de José Saramago, é todo ele - e ele é grande - sobre a queda de uma… cadeira. “Cadente, embora não estrela”, quando, em uso, parte-se um dos seus pés. O conto remete à queda de Salazar de uma cadeira de lona, em 1968, acidente doméstico que afastou o ditador da ditadura em Portugal e o levou à morte dois anos depois. É portanto, o conto, sobre um fascista caindo da cadeira, não sobre cadeira descendo na cabeça de fascista.
Em alguns trechos de “Cadeira”, porém, Saramago parece debruçar-se, com quase meio século de antecedência (o conto é de 1978), sobre o debate deste domingo, 15, na TV Cultura, com os candidatos a prefeito do São Paulo.
Especialmente nesta proposta de exercício de suspensão:
“Nenhuma investigação policial será feita, embora este fosse justamente o momento propício, quando a cadeira apenas se inclinou dois graus, posto que, para dizer toda a verdade, a deslocação brusca do centro de gravidade seja irremediável, sobretudo porque a não veio compensar um reflexo instintivo e uma força que a ele obedecesse; seria agora o momento, repete-se, de dar a ordem, uma severa ordem que fizesse remontar tudo, desde este instante que não pode ser detido até não tanto à árvore (ou árvores, pois não é garantido que todas as peças sejam de tábuas irmãs), mas até ao vendedor, ao armazenista, à serração, ao estivador, à companhia de navegações que de longe trouxe o tronco aparado de ramos e raízes. Até onde fosse necessário chegar para descobrir o caruncho original e esclarecer as responsabilidades”.
Remontar tudo, até onde fosse necessário, para esclarecer as responsabilidades de como a Política, com P maiúsculo, acabou como a cadeira comida pelo caruncho e como a cadeira que Datena desceu na cabeça de Marçal: “cadente, embora não estrela”.
A começar pela “datenização”, ao longo de décadas, do debate político, do jornalismo, da Justiça; a mídia e os donos do dinheiro tratando escolhas muito evidentes como “escolhas muito difíceis”; a dobradinha da TV Cultura, de todas as TVs, com o carunchão do lavajatismo, abre-alas do bolsonarismo; Leão Serva num dia fazendo voar longe o celular de um provocador, no outro “mediando” os vitupérios de um provocador muito pior, até que voou uma cadeira; a moral que este país, que este mundo dá para coachs, influencers e picaretas que tais; o oligopólio global dos algoritmos, máquina de ódio e caos nunca suficientemente enfrentada; as sucessivas anuências para jogar o jogo da Democracia dadas a quem só quer chutar peças e rasgar o tabuleiro; o cretinismo parlamentar levado às raias do modo literal; a realpolitik transformada de tática em programa, projeto, plano, se não em princípio, por partidos e governos progressistas, com resultado apatia e despolitização.
“Cadeira” abre o livro de contos Objecto Quase, de Saramago. Na verdade, na verdade, o que abre o livro é uma epígrafe de Marx e Engels. Esta:
“Se o homem é formado pelas circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente”.
Certa vez, comentando o livro, Saramago disse que essa epígrafe não foi parar lá por acaso:
“Não me parece que o Objecto Quase seja uma sequência de quadros, como igualmente não resultou de uma justaposição mecânica de textos escritos ao sabor das circunstâncias. O livro tem um projeto e um plano, propõe-se claramente contra a alienação”.