Assanhamento naval
Marinha do Brasil produziu e veiculou no Twitter/X uma peça de propaganda política atacando o resvalo, apenas um resvalinho, do corte de gastos na chamada "família militar".
O ex-comandante da Marinha Almir Garnier teria “tanques prontos no arsenal” para o golpe frustrado de 2022 , segundo informação que a Polícia Federal fez constar no relatório final do inquérito do golpe. Naquela altura, um sargento da Marinha então lotado no GSI do general Augusto Heleno apareceu em um vídeo gravado na frente do QG do Exército, no acampamento golpista, dizendo o seguinte:
“Aí pessoal, tá lotado. 24 de novembro de 2022, horário do jogo do Brasil, mas o povo não quer nem saber, o povo está aqui lutando pelo Brasil. Eu tenho certeza que o ladrão não sobe a rampa. Agora, você que tá bonitinho em casa, quando seu filho virar boiola ou uma sapatão esquerdista, não reclame”.
Na mesma época, o sargento Ronaldo Ribeiro Travassos disse a um interlocutor em mensagem de áudio: "O general Brandão me perguntou lá no gabinete: Marujo, o que você acha? Acho não, tenho certeza, o ladrão não vai subir a rampa”.
A referência era ao general Joaquim Brandão, então assessor de Heleno no GSI. Em outro áudio do “marujo” da época do golpe em marcha, ele profetizou: “a guerra civil vai rolar”. Em uma quarta mensagem, enviada a outro militar da Marinha então lotado no Palácio do Planalto, Travassos diz que daria um tiro na cabeça do próprio irmão “se ele fizesse o L”, e que “quem faz o L é terrorista. Tem que morrer mesmo, ou mudar ou morrer, porque não tem jeito uma pessoa dessa”.
"Não tô falando isso de brincadeirinha, não, é sério”, disse.
O material veio à tona pela Folha de S.Paulo, na virada de novembro para dezembro de 2022. Na época, aventou-se a possibilidade de que Ronaldo Ribeiro Travassos pegasse a dura pena de 10 dias de prisão. Mas o que o sargento Travassos pegou mesmo foi uma bela reserva remunerada, “a pedido”, “com a remuneração a que faz jus” - uma remuneração básica bruta de R$ 15.175,74.
O antigo assessor especial de Heleno, o general Brandão, reformado em 2019, ganha soldo de “marechal” - remuneração básica bruta de R$ 36.529,41. Em 2018, ele chegou a ser cotado para ser Ministro da Infraestrutura do governo Bolsonaro, em vez de Tarcísio de Freitas.
Já que falamos de antigos assessores, no dia 13 de março de 2023, início do governo Lula III, rescaldo do 8/1, o comandante da Marinha nomeado por Lula, Marcos Olsen, nomeou, por seu turno, um militar da confiança de Bolsonaro, o almirante Flavio Augusto Viana Rocha, para trabalhar em seu gabinete.
Flavio Rocha, que é militar da ativa, ocupou a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República de março de 2021 até o fim do governo Bolsonaro. Antes, Rocha havia servido a Bolsonaro na Secretaria de Assuntos Especiais da presidência e chegou chefiar interinamente a Secom, após a saída de Fábio Wajngarten.
Enquanto atuou no governo, o almirante foi classificado pela imprensa como "sombra" de Bolsonaro, por participar de praticamente todas as reuniões do então do presidente; de "homem secreto" de Bolsonaro, por seu protagonismo de bastidores; e de "chanceler paralelo" de Bolsonaro, por fazer mais viagens oficiais ao exterior do que o próprio ministro das Relações Exteriores.
Em junho de 2022, a repórter Daniela Pinheiro, do UOL, abordou Flávio Rocha em um evento em Lisboa, no âmbito de uma das muitas missões internacionais do almirante. Perguntado pela repórter sobre a hipótese de Bolsonaro não conseguir se reeleger, Rocha respondeu o seguinte:
"Se perder, em dois anos a desgraça será muito grande. Porque o Bolsonaro estava fazendo as coisas que o Temer começou, tipo reforma trabalhista, teto de gastos, o Brasil estava caminhando. E Lula vai parar tudo o que ele fez. Vai desfazer item por item. Eu não admito a mídia apoiar um ladrão desses".
Lembrando: quando deu esta declaração, Rocha era um almirante da ativa.
No mês seguinte, julho de 2022, lá estava o almirante da ativa, ao lado de Braga Netto, na reunião de Bolsonaro com embaixadores para enxovalhamento das urnas eletrônicas.
O almirante Flavio Rocha durou como assessor do almirante Olsen até março deste ano, quando passou para a reserva com remuneração militar bruta de R$ 37.179,96. Não há notícia de que o almirante Marcos Olsen tenha sido chamado às falas sobre o que o “homem secreto de Bolsonaro” fazia - fez, ao longo de um ano - assessorando o comando da Marinha no governo de reconstrução democrática.
Logo depois que Rocha saiu, Olsen entrou com um ofício na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, que analisava a inscrição do nome de João Cândido no livros dos heróis da pátria, classificando a Revolta da Chibata como uma “deplorável página da história nacional”, os participantes da revolta como “abjetos marinheiros” e a liderança de João Cândido na insurreição contra os castigos físicos na armada como “deplorável exemplo de conduta”.
Dias atrás, em pleno governo de reconstrução democrática, o comando da Marinha soltou uma nota no melhor estilo bolsonarista, atribuindo à imprensa o que na verdade está em inquérito policial, no inquérito do golpe, desmentindo a informação “de matérias veiculadas na mídia” de que o antecessor de Olsen tinha blindados de prontidão para golpe de Estado.
Agora, exatos dois anos depois de a Folha revelar o vídeo e as mensagens do “marujo” Travassos, a Marinha do Brasil produz e veicula no Twitter/X uma peça de propaganda política atacando o resvalo, apenas um resvalinho, do corte de gastos nos militares, sem nem o corte do soldo de golpistas.
Na peça, fuzileiros navais dão duro no mar enquanto um civil surfa na praia; arrastam-se na lama enquanto civis tomam um bronze na areia; atuam nas enchentes enquanto civis esbaldam-se nas boates; treinam para combate enquanto civis brindam com copos de cerveja, etc.
Como bem notou o professor Piero Leirner no mesmo Twitter/X: “Para a Marinha não existe classe trabalhadora. Os civis são um bando de turistas no Brasil, enquanto eles fazem tudo”.
No fim do vídeo, numa homenagem tardia ao sargento Ronaldo “o povo não quer nem saber de jogo” Travassos, a Marinha mostra fuzileiros lutando pelo Brasil enquanto civis lotam um estádio de futebol, logo antes de surgir uma maruja dizendo numa sala de máquinas: “Privilégios?”.
Agora, algum repórter poderia perguntar ao ministro José Múcio, da Defesa, de quem é este assanhamento naval: “Marujo, ou melhor, ministro, CPF ou CNPJ?”