Alimentando a máquina do caos
Republicar informações antigas como se fossem atuais embaralha a noção de tempo e é fator central, embora pouco percebido, do processo de desinformação.
Sentado na poltrona do avião, na fileira da direita, o deputado Lindbergh Farias está de costas para a câmera. Quem o filma, alguns lugares atrás, na fileira oposta, começa a ofendê-lo, em coro com vários outros passageiros.
“Pega o jatinho do Huck, rapá! Cadê você, rapá, que roubou, rapá! Ahhh... ladrão!”
“Que democracia é essa?”, protesta Lindbergh, sem sair do lugar.
“Democracia do roubo, né? Qual é a sua democracia? Oito anos roubando. Por isso você não foi reeleito, rapá!”.
“Ele é ladrão! Ele é ladrão! Ele é ladrão!”, repete outro, uma, duas, três, várias vezes.
Uma mulher procura acalmar o deputado. “Não responde, é isso o que eles querem. Nós vamos rebater na urna, cara, nós vamos rebater na urna!”
“Aêêêê... a fraude, a fraude! Hu-hu!”, reage o sujeito que está gravando.
O impacto imediato é sempre o da imagem. Quando enfim se presta mais atenção – mas quem presta atenção em alguma coisa hoje em dia? –, percebe-se algo estranho naquelas frases. Que diabo é isso de “pegar o avião do Huck”? Como assim, Lindbergh não foi reeleito? E que história é essa de “rebater na urna”? Para esclarecer, só conferindo a data da publicação. Que está lá, em tamanho microscópico: 10 de novembro de 2019.
Líder do PT na Câmara, Lindbergh tem denunciado enfaticamente as manobras de deputados bolsonaristas para tentar aprovar o projeto de lei da anistia para os golpistas do 8 de janeiro, desfazendo inclusive a “narrativa falsa” de que, caso consigam as assinaturas necessárias, a proposta seria tratada em regime de urgência, e demonstrando que o esforço de Bolsonaro nessa campanha não tem nada a ver com a redução de pena para a massa de fanáticos que depredou a Praça dos Três Poderes: o que ele quer é livrar a própria cara e a de seus parceiros na articulação do plano do “Punhal Verde e Amarelo”. Ao mesmo tempo, Lindbergh tem se empenhado, como vários outros colegas, na defesa do mandato do deputado Glauber Braga, que corre o risco de cassação, num processo de evidente perseguição política.
As cenas de hostilidade na cabine do avião demonstrariam a força da reação de bolsonaristas a essa atuação.
Terá sido por isso que esse vídeo voltou a circular, totalmente fora de contexto, cinco anos depois? Para ser indevidamente recontextualizado, excitando o fanatismo da extrema-direita e confundindo quem a combate, num momento de especial tensão na vida política do país?
A peça foi divulgada originalmente pela organização Nas Ruas, que existe desde 2011 e se apresenta como “um movimento social contra à (sic) corrupção, a impunidade e o mal (sic, de novo) uso do dinheiro público. Para tanto, promove eventos e grupos para debater e estudar a questão, assim como passeatas e manifestações”. Quem pesquisar por essa página no Facebook verá uma série de posts – principalmente, vídeos – de apoio a Bolsonaro e ao projeto de lei da anistia que ele defende, intercalados com outros, antigos – como esse das ofensas no avião –, que atacam os alvos preferenciais dos bolsonaristas. O resultado é diferente para quem entra diretamente na página, que apresenta os posts em sequência cronológica.
No livro A máquina do caos, publicado em 2023, o jornalista Max Fisher expôs o funcionamento das big techs e sua responsabilidade na disseminação de desinformação, teorias conspiratórias e discursos de ódio, que em vários casos resultaram em desestabilização política e golpes de Estado. A partir de entrevistas com pesquisadores e ex-funcionários dessas empresas, mostrou como a métrica baseada em engajamento cria um mundo no qual o conteúdo mais raivoso vira norma. Não se trata apenas de manipular os algoritmos para impulsionar determinados conteúdos e ampliar seu alcance junto a um público identificado como interessado neles: em certos contextos, diz o autor, mesmo conteúdos não desejados são oferecidos sistematicamente. O que conduz à elementar conclusão de que quem pode furar bolhas é quem controla os algoritmos.
Uma questão crucial nesse processo de produção do caos, à qual até agora não se deu a devida atenção, é o embaralhamento da noção de tempo. Não se costuma pensar nisso quando se fala em descontextualização, que é uma das maneiras de desinformar e confundir: nesses casos, pensa-se normalmente nas distorções resultantes de montagens ou edições e nos “cortes”, não nas informações, embora verdadeiras, apresentadas como atuais, quando não o são. E que contribuem decisivamente para desorientar.
O vídeo da agressão a Lindbergh, ressuscitado agora, é um exemplo disso. Mas, à esquerda, há inúmeros exemplos semelhantes. Um deles é o de um vídeo que voltou a circular desde pelo menos fevereiro deste ano e que mostra uma mulher loura, de camiseta escura com estampa da bandeira brasileira, usando também uma bandeira como capa, muito exaltada, à frente de um acampamento, à noite, fazendo um discurso ameaçador e completamente delirante.
Foi no início de 2023, dias antes da invasão e depredação da Praça dos Três Poderes. O vídeo trazia uma legenda comum, no alto: “Mas do que ela tá falando?”. Embaixo, em geral, outra: “Sem palavras!”. Mas algumas versões carimbavam uma legenda diferente: “A santinha inocente do baton”.
Não, não era a cabeleireira Débora Rodrigues, que virou símbolo da campanha pela anistia: era Ana Priscila Silva de Azevedo – “a mais famosa dos anônimos do 8/1”, como escreveu Hugo Souza –, que, em frente ao QG do Exército, em Brasília, gravou vários vídeos de incitação à “guerra”, e foi condenada pelo STF em 9 de dezembro de 2024 a 17 anos de prisão.
Este vídeo se multiplicou pelos perfis de esquerda nos últimos meses, sem referência à data nem à identidade da protagonista. Como em outros casos idênticos, a ressalva era respondida da mesma forma: o vídeo continuava atual, mostrava o que estava sendo planejado. Mesmo jornalistas argumentavam assim, esquecendo-se por um momento do compromisso com a precisão, e da confusão que se pode causar – como, de fato, ocorreu – quando essas informações são omitidas.
Outro exemplo, mais grave, é o do print de um texto, sem referência à fonte, que voltou a circular agora, quando Bolsonaro se submetia à sua mais recente cirurgia no abdômen, em meio às muitas suspeitas que sempre envolvem suas oportunas internações, coincidentes com momentos de intensa pressão, como o atual. “Catanhêde diz que Bolsonaro tomou ‘última dose de quimioterapia’”, diz o título. O texto cita um comentário da colunista num programa do jornal O Estado de S.Paulo na rádio Eldorado FM, dizendo que “o presidente (...) teve alta nesta quarta-feira 13 após tomar sua ‘última dose de quimioterapia’ no Hospital Albert Einstein. Quimioterapia é um tratamento indicado apenas para quem se trata de câncer – e não para quem se recupera de facadas”.
Um pouco mais de cuidado na hora de veicular o print permitiria perceber que a notícia era velha: seja pela data (foi compartilhada justamente ontem, dia 13, um domingo, não uma quarta-feira), seja pela referência a Bolsonaro como presidente (e não ex-), seja, finalmente, pela menção ao hospital onde estava internado (o Einstein, em São Paulo, e não o DF Star, em Brasília).
Porém a notícia, além de velha, era falsa.
Uma rápida pesquisa no Google informa que a publicação é do início de 2019. Sites de esquerda, como o 247 e o DCM, a divulgaram. Mas logo publicariam o desmentido. Em sua conta no (ainda) Twitter, em 14 de fevereiro daquele ano, Eliane Catanhêde apressou-se a corrigir a informação, embora não reconhecesse explicitamente o erro: “IMPORTANTE! O presidente Jair Bolsonaro tomou hoje a última dose de Antibióticos!!!!! Nunca, em nenhum minuto, soube ou ouvi que ele fazia quimioterapia. Ele não faz. Aliás, sua recuperação está indo muito bem agora, depois de debelado o início de pneumonia”. Só depois de alguém contestar que ouviu ao vivo “em alto e bom som” a jornalista falar em quimioterapia – e indicar na gravação o momento em que essa afirmação foi feita – é que Catanhêde assumiu: “Foi um erro, troquei última dose de antibióticos com última dose de quimioterapia”. (Não deixa de ser divertido ler o restante da justificativa e a sequência de comentários, incluindo o meme com Bela Gil, então muito em voga com seus conselhos culinários saudáveis: “você pode trocar antibióticos por quimioterapia”. Irresistível, também, não imaginar o que seria se não fosse uma jornalista, mas um médico, a fazer tão improvável confusão).
Em suma: uma informação incorreta causou o inevitável alvoroço mas, apesar de desmentida, voltou a circular como se fosse verdade, cinco anos depois.
São apenas dois exemplos, muito recentes, entre vários.
Não deixa de ser curioso que nós mesmos, tão críticos das táticas de desinformação à direita, acabemos por contribuir para a máquina do caos.