Ai, esta terra insiste em cumprir seu ideal
Operação policial em Portugal reforça o preconceito contra imigrantes pobres e favorece “o lobo que apregoa aos quatro ventos que é lobo e que veio para comer as ovelhas”.
Foi em 1982, nos últimos anos da ditadura. O fotógrafo Luiz Morier, do Jornal do Brasil, viu um camburão da PM estacionado à beira da pista da estrada Grajaú-Jacarepaguá e pediu ao motorista que parasse ali. Andou um pouco para dentro do matagal e pôde documentar a cena. “Fui fotografando antes que dissessem não”.
Suas fotos exibem um policial barrigudo e mal encarado, vigiando meia dúzia de homens negros amarrados pelo pescoço.
Um policial que tampouco era exatamente branco (seja lá o que isso signifique), mas que estava investido da sua autoridade.
Os homens eram trabalhadores, moravam numa favela próxima, tinham carteira de trabalho para comprovar. Carteira de trabalho, essa coisa rara hoje.
Trabalhadores ou não, que importa?
Eram negros.
E foram amarrados pelo pescoço.
Como nos tempos da escravidão.
Em 1994, na primeira Operação Rio, noticiada com o habitual espalhafato, com tanques apontando seus canhões para favelas, outra foto ficou famosa: crianças saindo da escola, obrigadas a se virar de costas, com as mãos espalmadas num muro, para serem revistadas.
A mesma humilhação se repetiria durante a intervenção militar no Rio de Janeiro, em 2018, comandada por aquele general que hoje está em cana, acusado de atrapalhar as investigações sobre a tentativa de golpe de Estado em 2022, pela qual também está indiciado.
Não é preciso dizer em que bairros essas operações ocorriam, quem eram as pessoas obrigadas a se identificar diante dos soldados do Exército.
Impossível não associar essas imagens ao que ocorreu nesta quinta-feira, 19 de dezembro, durante a operação policial no Martim Moniz, área de grande concentração de imigrantes pobres, majoritariamente africanos e asiáticos, vizinha à Baixa-Chiado, de grande concentração de turistas europeus brancos e endinheirados.
Uma rua interditada pela polícia, um monte de viaturas, uma fila interminável de gente virada de costas, mãos na parede, a serem revistadas.
O resultado: dois homens presos, um deles já alvo de mandado, outro com uma faca e alguma droga além do limite permitido para consumo próprio, apreensão de artigos “contrafeitos” (isto é, piratas) e de dinheiro supostamente oriundo desse comércio ilegal.
Um resultado pífio, se o objetivo fosse o combate (a esse tipo de) crime.
Mas um resultado exemplar para quem quer estigmatizar o imigrante pobre, especialmente se asiático, já rejeitado por boa parte dos portugueses, segundo recente pesquisa da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Esse tipo de cena não é novidade para quem mora em bairros periféricos, como conta Joana Gorjão Henriques, no Público desta sexta-feira, 20 de dezembro. “Quem mora em alguns bairros na Área Metropolitana de Lisboa, ou nas áreas mais periféricas, não estranha operações com dezenas de polícias a mandarem pessoas ao acaso encostar à parede. No Casal da Mira (Amadora), por exemplo, isso acontece frequentemente e está documentado. No bairro da Curraleira (Lisboa) também há queixas”.
Mas agora foi no Martim Moniz, ao lado dos Restauradores, do Rossio, da Baixa-Chiado. E foi documentado por câmeras.
A operação é o mais recente resultado prático da entrevista coletiva que o primeiro ministro de Portugal, Luís Montenegro, convocou no fim de novembro, na esteira dos tumultos que se seguiram ao assassinato de um homem negro, cabo-verdiano, em abordagem policial na Cova da Moura. A convocação foi para dizer que Portugal era um dos países mais seguros do mundo mas que, por isso mesmo, precisava da ação articulada de inúmeras instituições, policiais, judiciárias e tributárias, para o combate ao crime. Que não deveria ser tão significativo assim, ou Portugal não seria um dos países mais seguros do mundo.
A operação desta quinta-feira foi para demonstrar que o crime está localizado em comunidades estrangeiras pobres, de pele escura, que mal falam a língua do país. Não importa se apenas duas pessoas foram presas, nem que ambas fossem portuguesas: importa reforçar as suspeitas que recaem sobre essa gente.
Importa a... percepção.
Foi o que sublinhou Montenegro ao rebater as críticas que essa operação recebeu e prometer que esse tipo de abordagem iria continuar, para tranquilizar a população, porque a percepção de insegurança não se relaciona com o número de crimes.
Pois, claro que não.
Relaciona-se com o alarde que se faz quando se convoca uma coletiva a proclamar solenemente que o país é muito seguro (quando ninguém, a não ser a extrema-direita, questionava isso), mas que apesar disso é preciso apertar as medidas de segurança.
É assim também que se mantém a percepção de que a criminalidade aumentou em Portugal e decorre do aumento do número de imigrantes nos últimos anos, embora todos os dados disponíveis digam exatamente o contrário disso.
Já a “percepção” das autoridades continua a negar que haja racismo ou xenofobia em Portugal, embora o sentido xenófobo e racista dessa investida no Martim Moniz tenha sido muito evidente.
Associar o crime à imigração é uma das pautas centrais da extrema-direita em todo o mundo. A fantasia dos mitos de origem, que definem a ilusória pureza de uma identidade cultural, depende disso.
Por isso Joana Gorjão Henriques destaca o comentário de um de seus entrevistados, por acaso um policial às vésperas de aposentar-se: “O Chega [partido da extrema-direita e hoje terceira força do Parlamento em Portugal] conseguiu impor sua agenda”.
A propósito, o professor Pedro Schacht comentou, no seu perfil no Facebook: “Quem pretende disputar a preeminência ao fascismo através da instrumentalização das suas técnicas (nomeadamente a instrumentalização da violência policial sobre imigrantes) não disputa coisa nenhuma, apenas se alcandora na posição de fascista. O resultado não é a diminuição do espaço concedido ao fascismo, é precisamente a expansão desse espaço, e a asfixia progressiva do estado de direito. E quem beneficiará eleitoralmente não é o lobo com pele de cordeiro, é o lobo que apregoa aos quatro ventos que é lobo e que veio para comer as ovelhas.”
Este ano, depois de manifestações mais acanhadas em anos anteriores, a direita e a extrema-direita portuguesas conseguiram comemorar numa sessão solene no Parlamento o 25 de Novembro, que veem como uma vitória contra o comunismo, quando a história é bem outra. Costuma-se comemorar datas redondas; ninguém comemora os 49 anos de uma data histórica, mas a decisão de realizar a solenidade em 2024 teve o objetivo de equipará-la às celebrações do cinquentenário do 25 de Abril. Se juntarmos essa iniciativa às comemorações dos 500 anos da morte de Vasco da Gama, numa evocação às glórias passadas dos heróis do mar que abriram caminho à construção do império “do Minho ao Timor”, se pensarmos no simbolismo da figura desse navegador e da conquista que submeteu povos inteiros e sustenta o discurso xenófobo e racista que cresce em Portugal, podemos ver o fio que liga colonizadores e colonizados, nas cenas humilhantes do policial vigiando os pretos presos por uma corda amarrada ao pescoço, na revista às crianças saindo da escola, na batida policial no Martim Moniz.
Há 50 anos, os cravos representaram uma grande esperança. Apesar disso, esta terra insiste em cumprir seu ideal.