Uma estrada e o sol laranja
Governo trata como prioridade conclusão de estrada conhecida como “rodovia do desmatamento”. Ambientalistas alertam para expansão das fronteiras do desmate e dos incêndios para o coração da Amazônia.
“Não adianta a gente fazer reservas numa floresta qualquer e aquilo ficar só para os mosquitos e as cobras se enxergarem”, afirmou o presidente Lula na última quarta-feira, 18, no Palácio do Planalto, na cerimônia de sanção do Projeto de Lei 1829/2019, que modifica a Lei Geral do Turismo.
“É preciso que a gente crie condições de transformar aquela reserva numa área de visitação. Vamos atrair o pessoal que diz que ama a Amazônia lá na Europa, lá no Ocidente, para visitar o Brasil. Tem que ter uma picape, uma estradazinha”, disse ainda Lula na cerimônia.
Uma semana antes, no dia 11 de setembro, o governo Lula, via chanceler Mauro Vieira e ministro do Agronegócio, perdão, da Agricultura, Carlos Fávaro, tinha mandado carta à União Europeia suplicando que a UE não aplique sua lei contra produtos oriundos de desmatamento.
A propósito da carta, um conhecido cirandeiro ecochato e antipetista, Janio de Freitas, escreveu o seguinte do Poder 360: “com São Paulo como a grande cidade mais poluída do mundo, e a Amazônia como maior emitente de gases poluidores no mundo, o governo não teria momento mais impróprio para seu apelo dramático ao conselho dirigente da União Europeia”.
Mas as declarações de Lula sobre a solidão dos mosquitos e das cobras se encarando na floresta improdutiva, de que “tem que ter estradazinha”, não coincidiram apenas com a carta da diplomacia monocultora-extensiva-exportadora ao “pessoal que diz que ama a Amazônia lá no Ocidente”.
Voltemos um pouquinho, a junho. No dia 11 daquele mês, o Ministério dos Transportes publicou um relatório garantindo que há viabilidade ambiental para a pavimentação do chamado Trecho do Meio da BR-319, que liga Manaus a Porto Velho. A BR-319 é um projetozão de estradazinha da ditadura conhecida pelo infausto epíteto “rodovia do desmatamento”.
O Trecho do Meio, que o governo quer asfaltar, tem exatos 405,7 quilômetros rasgando o que há de mais preservado em floresta amazônica. Nas últimas décadas, tem sido unanimidade entre ambientalistas que um eventual asfaltamento do Trecho do Meio da BR-319 seria desastroso para a Amazônia. Seria, na prática, expandir no coração do bioma as fronteiras da grilagem, do desmate e dos incêndios florestais.
Entregue por Lula ao filho de Renan Calheiros, o Ministério dos Transportes, no entanto, no relatório, minimiza os riscos dessa highway e conclui que tudo se resolve, ajeita-se; que acomoda-se “o desenvolvimento regional e a preservação do meio ambiente” com a “implantação de cercamento para preservar a fauna na área crítica do Trecho do Meio” e “instalação de 172 passagens de fauna ao longo da via”.
Na “gestão inovadora” proposta pelo Ministério dos Transportes para o coração da Amazônia, a onça, a anta e o mono-carvoeiro terão passagens de fauna para usarem como saídas de incêndio.
Salles rules
Apenas três dias após o envio da carta à União Europeia, em 14 de setembro, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) apresentou ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região um estudo cujo teor também aponta para a viabilidade ambiental da pavimentação do Trecho do Meio da BR-319.
Uma licença prévia para o asfaltamento tinha sido dada pelo Ibama bolsonarista no apagar das luzes do governo Bolsonaro, mas foi anulada pela Justiça em julho deste ano, em decisão liminar da 7ª Vara Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas no âmbito de uma ação movida pela ong Laboratório do Observatório do Clima.
O documento apresentado no dia 14 pelo DNIT ao TRF-1, para tentar derrubar a liminar, é um Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) timbrado com a marca “Pátria Amada Brasil”; foi justamente o documento usado como base para emissão da licença prévia dada em 2022 pelo Ibama bolsonarizado por Ricardo Salles.
Encomendado pelo governo Bolsonaro, via DNIT, à empresa Engespro Engenharia, sob o custo de R$ 13,8 milhões, o EIA/RIMA desencavado agora pelo governo Lula diz que a conclusão do Trecho do Meio da BR-319 “proporcionará um desenvolvimento das atividades rurais e florestais” na região. Não precisa ser nenhum Sherlock equatorial para inferir que a mais-valia em questão é a da exploração de madeira amazônica.
Em sua última página, o EIA/RIMA da Engespro conclui candidamente que “ao final dessa jornada, entendemos que a pavimentação do Trecho do Meio é VIÁVEL” tendo em vista “a baixa interferência direta do empreendimento no meio ambiente, devido, em grande parte, ao mosaico de áreas protegidas (Unidades de Conservação), presente ao longo da rodovia”.
No final do ano passado, uma vistoria no Trecho do Meio feita pelo Ibama desbolsonarizado identificou “muitas áreas novas desmatadas e queimadas ao longo da rodovia” antes mesmo da pavimentação. Estamos falando de 42 Unidades de Conservação e 69 Terras Indígenas nas áreas ao redor da estradazinha.
Os técnicos do Ibama recomendaram autuação do DNIT. No governo Lula III, o DNIT foi loteado para o MDB do Senado. O diretor do órgão, Fabrício Galvão, por exemplo, é quinhão do senador Renan Pai, ou melhor, Calheiros. Agora, por exemplo a Gazeta do Povo, órgão da extrema-direita nacional, faz coro ao governo Lula III pela “necessária luta pela conclusão da BR-319”.
Há poucos dias, o próprio presidente Lula, defendendo a conclusão da estradazinha, falou como um Ricardo Salles: “o mundo que compra o nosso alimento está exigindo que a gente preserve a Amazônia. E por quê? Porque eles estão querendo que a gente cuide do ar que eles respiram. Eles não preservaram as terras deles no século passado, quando houve a revolução industrial”.
Ou não falou?
“Eles reclamam do Brasil ações para mitigar a questão climática, mas eles próprios são os verdadeiros responsáveis pelo dano. Quem fez a revolução industrial, a partir do século 19, foram os países ricos, como a Alemanha, a Inglaterra, os Estados Unidos, o Japão. Eles cortaram suas florestas para fazer dormente de ferrovia, carvão de locomotiva, indústrias rodando com caldeiras. Eles acabaram com as florestas para fazer a revolução industrial e ficaram ricos com isso”, disse Ricardo Salles no ano passado, no Congresso Nacional, em fala exaltada pela… Gazeta do Povo.
Parece que, como vem dizendo Tabata Amaral, chegou a hora de incorporar as “boas propostas” da extrema-direita…
Aliás, no dia 19 de dezembro do ano passado a Câmara dos Deputados aprovou sob regime de urgência, em nove minutos e precisamente às 23h35, um projeto de lei que classifica a BR-319 como “infraestrutura indispensável à segurança nacional”, elimina etapas para o licenciamento ambiental da pavimentação da estrada e previa até o uso de recursos do Fundo Amazônia para o asfaltamento.
A bancada do PT na Câmara votou em peso contra o projeto, mas ele foi aprovado por 311 votos a 103 e sob gritos de “Viva o Norte!”.
Agora, o PL 4994/2023 está no Senado, na Comissão de Serviços de Infraestrutura, com relatório pronto e feito por um senador do PT, do Pará: Beto Faro. “Primeiro ribeirinho no Senado Federal”, líder da bancada do PT no Senado, Faro limou do texto um trecho do meio, por assim dizer, aquele trecho sobre o uso do Fundo Amazônia para destruir a Amazônia, mas só porque isso poderia causar “embaraços”, e apresentou parecer favorável ao projeto.
“Os aspectos relacionados às questões ambientais serão analisados pela Comissão de Meio Ambiente, a quem compete opinar sobre assuntos pertinentes à defesa do meio ambiente”, disse Beto Pilatos em seu relatório.
Em outro relatório, este publicado em fevereiro pela revista Nature, os pesquisadores Lucas Ferrante e Guilherme Becker afirmam que o asfaltamento do Trecho do Meio da BR-319 arrisca, de resto, “propiciar saltos zoonóticos que podem resultar em uma sequência de pandemias”, já que “este bloco da floresta é o maior reservatório de patógenos do nosso planeta, tais como vírus, fungos, bactérias e príons”.
O que o mosquito disse para a cobra quando se enxergaram com dificuldade, por causa da fumaça, à luz do sol laranja, numa floresta qualquer?
“Leu a Nature?”.