A resistência de uma multidão de formigas*
A mais recente cena de brutalidade policial em São Paulo** faz recordar documentário premiado em 2018. Até quando vai durar essa sangria?

Auto de Resistência não tem novidade para quem acompanha a nossa tragédia cotidiana. No entanto, é impossível não ficar dilacerada diante daquelas cenas, daqueles relatos, daquela dor.
O filme começa com a imagem em close de alguma coisa minúscula que se move no tronco áspero e cheio de musgo de uma árvore. É uma formiga que carrega lentamente um fardo muito maior do que ela e precisa contornar um objeto saliente: um projétil encravado no tronco. A câmera passeia por um muro chapiscado e marcado por sulcos. Depois, mostra partes de um carro varado por balas: os sulcos no muro são dos tiros, o carro é o que foi alvejado por 111 disparos na chacina de Costa Barros, onde morreram cinco jovens que voltavam da comemoração do primeiro salário do mais novo deles, de 16 anos, contratado como aprendiz. (Cento e onze, por coincidência, o mesmo número de mortos no massacre do Carandiru). Segue com mais quatro casos selecionados entre os de maior repercussão nos últimos anos. São mães devastadas, que despertam para a luta diante da violência que as atinge de maneira tão brutal, que se abraçam e choram juntas, que encontram forças na revolta e no protesto contra o Estado racista e assassino. Uma delas repete e repete e repete o que testemunhou. No momento da reconstituição, murmura: “Estou vivendo tudo de novo”.
Tudo de novo, e de novo, e de novo.
A mãe do rapaz assassinado em Manguinhos, dona do discurso mais potente entre todas, depõe na CPI dos Autos de Resistência. O que ela mais quer é o filho de volta, e sabe que isso não é mais possível. Então quer “o mínimo, o mínimo”: a punição dos policiais assassinos. Pelo menos isso, para que não continuem a matar – mas continuarão, enquanto a política de guerra às drogas (que nunca é contra coisas, mas contra pessoas, como lembrou um defensor, citando a juíza aposentada Maria Lúcia Karam), continuarão enquanto a política de guerra às drogas prevalecer: essa política que é parte fundamental da luta de classes dissimulada que extermina a juventude preta e pobre.
Outra mãe denuncia o que ocorreu com o filho e diz que seu deus é tão forte que a câmera gravou o momento do assassinato, do contrário não haveria provas.
Deus é forte para fazer o crime ocorrer diante da câmera, não para evitá-lo: inútil argumentar, quem aprendeu que tudo o que acontece de mau é obra do demônio jamais enxergará a contradição.
Sobra a sensação de impotência, temperada apenas por breves momentos de distensão que despertam o riso quase inevitável diante do cinismo de certos policiais durante o julgamento. Marielle aparece em duas ou três cenas, no meio de manifestações de protesto. Marielle, que tanto lutou contra isso, que insistia em perguntar quantos mais teriam de morrer até que essa guerra acabasse, e que foi executada quando o filme ainda estava em processo de montagem.
Do alto do helicóptero, dois fuzis despejam munição sobre uma favela. Os policiais descem e recolhem os corpos. O piloto estranha que seus colegas estejam sendo processados por isso: foi uma operação normal, apenas traficantes morreram.
Tudo normal.
Andar pelas ruas de Botafogo depois disso, ao cair da tarde, passar pelo shopping iluminado com suas vitrines exuberantemente coloridas com a paisagem espetacular da cidade, o desenho das asas-deltas circulando em volta das montanhas e sobrevoando o mar, o mar que aparece nas telas das TVs na parede dos bares, e saber que a máquina da morte continua a funcionar, e as imagens do filme rodando na cabeça, rodando, rodando: como é possível conviver com isso? É terrível demais, atordoante demais, sobretudo porque não há no horizonte qualquer esperança de se estancar essa sangria. Muito pelo contrário.
Não há novidade, no entanto não é possível ficar indiferente a isto.
Por isso, também, reproduzo a resenha de José Geraldo Couto, que associa este documentário a um filme de ficção e puxa o fio desses cinco séculos de infinita escravidão.
Minúsculas formigas carregando um fardo maior do que si próprias. Uma multidão de formigas.
É preciso ler esta resenha, é preciso ver o filme, é preciso insistir em enfrentar esse estado de coisas.
*Este texto, com pequenas alterações, foi publicado originalmente no Facebook, em 24/07/2018, e depois republicado na página do Medium do DefeZap, um serviço de denúncias de violência policial no Rio de Janeiro criado em 2016 mas atualmente suspenso.
**Leia o artigo “Lucas, sua morte pela hidra”, de Hugo Souza.