'A outra anistia'
O Exército Brasileiro foi se entendendo com aquele que considerava indigno da farda quando foi percebendo que poderia cavalgar os desejos do ex-capitão, os mesmos do generalato.
Nesta terça-feira, 25, ou no máximo na quarta, o STF deve tornar réus por tentativa de golpe de Estado os seguintes denunciados pelo Ministério Público: o ex-capitão e ex-presidente Jair Bolsonaro; os três generais quatro estrelas Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio; um tenente-coronel do Exército, Mauro Cid; e um almirante de esquadra, Almir Garnier, além do ex-ministro da Justiça Anderson Torres e do ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem, hoje deputado federal.
Enquanto viram réus no STF, contam votos no Congresso para o seu projeto de anistia, esses verdadeiros filhotes da Lei de Anistia de 1979 e da sua interpretação/aplicação que prevaleceu até agora. Um nova anistia que, se aprovada, “será o 1º ato da retomada do país pela extrema-direita. Com ganas de vingança”, como escreveu Janio de Freitas na semana passada.
Nesta véspera do início julgamento de Bolsonaro et caserna no Supremo, convém lembrar de outra anistia, além da Lei 6.683/1979, também imbricada com o golpismo e os golpistas atuais. “A outra anistia”. Este é o nome do nono capítulo do livro Poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro (Companhia das Letras, 2022), do jornalista Fabio Victor.
“Como um capitão que por alguns anos foi considerado indigno da farda pela alta oficialidade do Exército acabaria ungido como líder pelo mesmo grupo que o deplorava?”, indaga Fabio Victor, referindo-se às turras entre Bolsonaro e grão-milicos na década de 1980, especialmente com o ministro do Exército no governo Sarney, o general Leônidas Pires Gonçalves, e principalmente após Bolsonaro planejar uma campanha por aumento dos soldos na base de atentados terroristas.
O livro de Fabio Victor mostra que a “jornada rumo à anistia” de Bolsonaro se inicia ainda nos anos 1990, quando o então major Paulo Chagas começa a buzinar nos ouvidos do à época ministro do Exército, Zenildo Lucena, que as reivindicações do deputado federal no Congresso iam ao encontro de desejos do generalato.
(Décadas depois, em abril de 2018, em outra véspera de julgamento decisivo do STF - o do habeas corpus de Lula - , o general da reserva Paulo Chagas disse que tinha “a espada ao lado, a sela equipada, o cavalo trabalhado” quando o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, ameaçou publicamente o Supremo, contra a liberdade de Lula).
Em 1998, no âmbito da sua “jornada ruma à anistia”, Bolsonaro foi a voz na Câmara do generalato contrário à criação do Ministério da Defesa. Depois, já nos anos 2000, Bolsonaro vocalizou na Câmara a resistência dos militares a serem incluídos na reforma da Previdência do governo Lula I.
“O governo Lula - escreve Fabio Victor - chegou a considerar acabar com o regime diferenciado de seguridade social para integrantes das Forças Armadas, mas, ante a chiadeira dos fardados, recuou. Na tribuna, o capitão reformado compartilhou com um colega parlamentar uma mudança de ventos:”
“Deputado Professor Irapuan Teixeira, tive a honra de ser convidado, pelo comandante do Exército, para entrega de espadins, na Academia Militar de Resende, onde estive no sábado. Foi a 15ª solenidade consecutiva a que compareci. Na maioria das vezes, não fui convidado por diversos motivos.”
O comandante do Exército que convidou Bolsonaro para o espadim da Aman foi o general Francisco Roberto de Albuquerque. O sucessor de Albuquerque, general Enzo Peri, fez o mesmo. O sucessor de Peri, Villas Bôas, fez o que fez em 2018, entrando de coturno no lawfare contra Lula a fim de tirar Lula do páreo nas eleições daquele ano; a fim de abrir caminho para a eleição de Bolsonaro e, para isso, contando com a ajuda do seu então chefe de gabinete, general Tomás Paiva - atual chefe da Força -, para redigir a ameaça ao STF.
Quatro anos antes, em 2014, foi justamente num espadim da Aman que Bolsonaro falou pela primeira vez em público como candidato a presidente da República. Naquele dia, ele prometeu “virar o país à direita”, em discurso feito aos cadetes nos jardins da Aman, 22 anos depois de Bolsonaro estacionar um chevette azul na frente do Portão Monumental da academia, indignado por ter sido impedido de entrar, justamente em de espadim, e provocando a ira do então ministro do Exército, Carlos Tinoco, que mandou guinchar dali a caranga.
O “lançamento” da candidatura de Bolsonaro ao Palácio do Planalto dentro de uma das mais importantes organizações militares do Exército, sem que fosse impedido - muito menos punido -, aconteceu na esteira da atuação do deputado, ao longo dos anos anteriores, contra a Comissão Nacional da Verdade - desde que Dilma Rousseff designou os sete integrantes da CNV e Bolsonaro afirmou que uma cafetina havia escolhido sete prostitutas para escrever sua biografia.
O comandante da Aman no espadim de 2014 era o general Tomás Paiva, que anos mais tarde viria a sugerir que Villas Bôas escrevesse “repúdio à impunidade” na ameaça ao STF na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula.
O general Leônidas morreu no ano seguinte, 2015. Figura legendária entre os militares, ele tinha feito as pazes com Bolsonaro, nos anos 2000, num “movimento muito importante” (como ressalta Fabio Victor) daquela “jornada rumo à anistia”. Quatro anos depois, em 2019, numa cerimônia em Brasília, um recém-empossado presidente Bolsonaro disse assim a outro personagem mítico dos milicos:
“General Villas Boas, o que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.
eu estar aqui x ainda estou aqui