A alcateia e suas conexões
Não há lobos solitários nem fatos isolados; há um contexto demarcado pelo atual funcionamento das redes.
No livro A máquina do caos, o jornalista Max Fisher mostra como as grandes plataformas atuam, com seus algoritmos, no incentivo e na ampliação do fanatismo de pessoas que antes se comportavam como pacatos cidadãos. O processo que dispara o gatilho daquilo que, imperceptivelmente (e às vezes nem tanto...), já está lá, é tema tradicional no campo da psicologia e da psicanálise, mas precisaria de atenção especial nesse novo contexto em que passamos a viver, com as conexões estabelecidas pelas redes virtuais.
A tese do “lobo solitário” costuma aparecer sempre que ocorrem atentados como o desta quarta-feira, 13 de novembro, em Brasília, ainda mais quando há elementos para caracterizar o indivíduo como um perturbado mental. Serve para nos apaziguar: é só um maluco que extrapolou, felizmente não provocou grandes danos, podemos continuar tocando a vida.
Porém, a tese é equivocada por princípio, porque ignora as condições sociais (e políticas) que produzem esses “lobos”. Neste caso, mais ainda, diante de tudo o que vem acontecendo no Brasil desde 2013 e mais intensamente desde a vitoriosa campanha de Bolsonaro para a presidência. O uso das suas redes para disseminar mentiras foi amplamente comprovado e, apesar disso, prosseguiu durante seu mandato, com a criminosa negação da pandemia e a promoção do “kit cloroquina”, as insistentes e infundadas suspeitas quanto à confiabilidade das urnas eletrônicas, as acusações e ameaças ao Supremo Tribunal Federal – e, em especial, ao ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news – e as repetidas ameaças golpistas. A irracionalidade da massa bolsonarista se manifestou em todo esse período e continuou a se expressar na rejeição à derrota eleitoral de 2022, com a aglomeração diante dos quartéis, o apelo a extraterrestres, a convicção de que “algo iria acontecer”, até que aconteceu mesmo: a tentativa de golpe de 8 de janeiro do ano seguinte, que resultou na prisão da arraia-miúda, mas até agora não incomodou os mandantes. Antes disso, é preciso lembrar, houve o ataque à sede da Polícia Federal, no dia da diplomação de Lula, e a tentativa de explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília, na véspera do Natal, frustrada por uma falha técnica. Este terrorista, aliás, como lembrou o Hugo Souza neste Come Ananás, também foi, à época, classificado pela imprensa como “lobo solitário”.
É esse contexto que estimula, insufla, convence um perturbado mental a passar à ação e se tornar um mártir vingador. Vestir-se como um Coringa desafiador do “sistema” é o detalhe estético que completa o quadro.
Bolsonaro, que agora assume o figurino da pessoa prudente e ponderada, e ainda obtém espaço num grande jornal para se declarar defensor da democracia, apressou-se a dizer que aquele atentado era um fato isolado e apelou à necessidade de pacificação nacional. Claro, percebeu que o tresloucado gesto enterrava, ou pelo menos adiava, a possibilidade de anistia pelos crimes do 8 de janeiro, da qual ele próprio pretendia beneficiar-se num julgamento futuro, a ponto de recuperar os direitos políticos para poder concorrer em 2026.
Felizmente, houve firmes reações em sentido contrário, a começar pelo próprio Alexandre de Moraes, que pôs a coisa em seus devidos termos: não, não foi um fato isolado, porque – independente de haver conexões para o cometimento daquele ato específico, o que ainda está para ser apurado – havia um contexto, e “o contexto se iniciou lá atrás, quando o ‘gabinete do ódio’ começou a destilar discurso de ódio contra as instituições, contra o STF, principalmente contra a autonomia do Judiciário”. Também o diretor geral da Polícia Federal rejeitou a tese do “fato isolado” e enfatizou a necessidade de regulamentação das redes sociais.
Max Fisher mostra em seu livro ao mesmo tempo a urgência dessa regulamentação e os obstáculos para alcançá-la. É uma luta difícil, que exige clareza sobre o que está em jogo. É também por isso que precisamos rejeitar explicações simplistas em casos como o que acabamos de vivenciar: não há lobos solitários nem fatos isolados; há um contexto demarcado pelo atual funcionamento das redes, que permite e estimula a perpetração de atrocidades. Não é possível continuar a conviver com isso.
Boa tarde
Bem na ferida...