8 de Março: 'submissas nos querem, rebeldes nos terão'
Come Ananás reproduz na íntegra o discurso da deputada Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda, na sessão solene do Dia Internacional das Mulheres na Assembleia da República Portuguesa.
Come Ananás reproduz logo abaixo, na íntegra, o discurso feito pela alentejana, marxista, fadisteira e deputada do Bloco de Esquerda Joana Mortágua na sessão solene pelo 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, realizada nesta sexta-feira, 7, na Assembleia da República Portuguesa.
Na sessão, a deputada bloquista usou uma camiseta “Luta como uma garota”, da “marca-protesto” brasileira Peita.
Após a transcrição, o vídeo do discurso de Joana Mortágua.
Viva o 8 de Março! Viva a luta das mulheres!
Saúdo os presentes e as presentes, as associações feministas. Saúdo para não deixar de notar os ausentes, a começar pelo primeiro-ministro, pelo governo, pelo presidente da República, que demonstram que, sendo solene, esta cerimônia é de uma solenidade menor do que as outras cerimônias solenes que acontecem tão frequentemente nesta Assembleia da República.
Senhor presidente, senhoras e senhores deputados, no início foi o pecado. O pecado número 2.513. Mas antes, recuemos até 1789, ano da Revolução Francesa, que pariu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e com ela selou o paradoxo do liberalismo clássico: o universal masculino, dito gramatical e neutro, era afinal bastante literal. Foram os homens e os cidadãos do sexo masculino quem realmente teve os seus direitos reconhecidos. A humanidade das mulheres foi negada.
A Revolução Francesa impôs uma amarga derrota para o feminismo. A presença de mulheres em atividades políticas foi proibida. A consequência era a guilhotina. Segundo Rousseau, haviam transgredido as leis da natureza, renunciando ao seu destino de mães e esposas, querendo ser homens de Estado. Querer ocupar-se dos assuntos coletivos era querer ser homem. O Código Napoleônico garantiu que ainda hoje estamos a expurgar do nosso Código Civil a universalidade do bom pai de família como senhor e medida de todas as coisas.
Em resposta, Olympe de Gouges escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Acusada de traição à pátria, foi condenada à morte e decapitada aos 45 anos de idade. Crime? Crime número 2.513. Muitas mulheres como ela escreveram a História em tinta e sangue, mas foram ativamente apagadas dela.
No século XIX, a pensadora Flora Tristan descreveu de forma ímpar este apagamento, e cito: “o padre, o legislador, o filósofo trataram a mulher como uma verdadeira pária. A mulher é metade da humanidade, mas foi colocada fora da igreja, fora da lei, fora da sociedade. O padre diz-lhe: ‘mulher, tu és a tentação, o pecado, o mal. Representas a carne. És a corrupção e a podridão’. O legislador diz-lhe: ‘mulher, por ti própria tu não és nada como membro ativo da humanidade. Se quiseres viver, que sirva de anexo ao teu senhor, mestre, o homem’”.
Muitas mulheres participaram em todas as revoluções. Conhecemos os nomes de muito poucas. Revoluções que prometeram a igualdade: a Revolução Americana de 1776, a Revolução Francesa, a Revolução Portuguesa de 1910, a Revolução Russa de 1917. Quatro revoluções, três traições. Só uma delas reconheceu a plena igualdade civil entre homens e mulheres. A Revolução Russa reconheceu a igualdade, e por isso Alexandra Kollontai tornou-se a primeira mulher num Estado moderno a pertencer ao governo.
Poucos anos antes, em Portugal, a Primeira República também foi conquistada por homens e mulheres. Teve até uma mulher por símbolo, mas traiu o feminismo sufragista, a quem os republicanos tinham jurado lealdade.
Quando Carolina Beatriz Ângelo quis fazer valer essa jura e se apresentou para votar enquanto “chefe de família”, rapidamente se apressaram a mudar a lei para manter as mulheres fora do voto e da eleição. O tal universal masculino voltava a ser literal e nada, nada neutro.
A República que destratou as mulheres e destratou os trabalhadores e trabalhadoras só se fez frágil. E frágil caiu perante o golpe reacionário. A ditadura do tradicionalismo católico destruiu as organizações feministas da Primeira República e a própria memória das suas lutas, quebrando violentamente a transferência de testemunho entre as gerações de mulheres em luta pela liberdade.
A Constituição de 1933 estabelecia a igualdade perante a lei, mas com uma exceção, “quanto às mulheres”, que era justificada com “as diferenças da sua natureza e o bem da família”. Acreditava-se então que a intervenção das mulheres na política iria colocar em causa o modelo tradicional de família. A ideologia de gênero do Estado Novo permitiu a eleição de mulheres, sim. Mas apenas três, solteiras e escolhidas por Salazar para intervir, e cito, “pela ação moralizadora da mulher cristã, pela doçura das suas palavras, pela correção das suas maneiras, pela persuasão das suas lágrimas”.
Nesta ideologia, em que metade da humanidade está condenada a tropeçar na virtude, e a outra metade na imoralidade que a corrompe, a lei eleitoral de 1933 daria direito de voto apenas às mulheres com reconhecida idoneidade moral. Um teste duro para existências tão impuras, como as que viriam ser as de Natália Ferreira e Maria Tereza Horta. Delito 2.513. A partir de 1968 o direito de voto seria alargado, mas apenas às mulheres escolarizadas, que é uma maneira um pouco mais hipócrita de se chegar ao mesmo fim, que é negar o voto às mulheres.
Só em 1974 a Revolução de Abril reconheceu o sufrágio universal para as mulheres, iluminando um caminho de conquistas de igualdade que agora cumpre 50 anos.
Cada uma dessas lutas fez-se contra a estrutura de repressão e a ideologia de gênero do Estado Novo, da qual todas as desigualdades e violências persistentes são tributárias. Por isso, hoje é o dia certo para dizer: não aceitamos que, sob os mesmo pretextos com que durante séculos excluíram e oprimiram as mulheres, agora querem imprimir retrocessos aos direitos das mulheres e oprimir a diversidade.
Recordem-se sempre do número 2.513, o número de recenseamento com que Carolina Beatriz Ângelo exerceu o seu direito de voto na Assembleia Eleitoral de Arroios em 1911. O número do nosso maior crime - o nosso, mulheres - será aquele que nos faz avançar: a rebeldia. E é precisamente por isso que nunca podemos desistir dela.
Submissas nos querem, rebeldes nos terão.
Viva Carolina! Viva o 8 de Março! Viva a luta das mulheres!
Bom dia.
Obrigado lula por não ter ido...
Assim tive oportunidade de aprender uma bela lição de história.
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Em nome de Lula, peço humildemente perdão por não ter comparecido....
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