Em artigo de 1988 originalmente destinado a publicação na Folha de S.Paulo, mas nunca posto em tintas em papel jornal, Florestan Fernandes volta-se, com sua verve característica, contra o enquadramento militar da sociedade civil e do sistema de poder na transição da ditadura para a – Florestan põe assim, entre aspas – “nova” República:
“A questão militar é a questão candente da situação histórica atual. Ela se põe no núcleo do poder, da ruptura definitiva com o passado e com as perspectivas de um futuro para a democracia. Nos confrontos verbais, os porta-vozes mais categorizados e por vezes brilhantes da ditadura e da “nova” República falam em disciplina e hierarquia. Duas palavras nobres, mas que se esfarelam diante da realidade. Que disciplina? A disciplina que conduziu ao golpe de Estado, às sucessivas recomposições da República institucional, à conciliação conservadora e ao impedimento de uma saída democrática rápida, direita e pacífica? Não menciono os crimes que se cometeram em seu nome e os impasses que temos vivido por causa desse conceito autocrático. Que hierarquia? A hierarquia que transbordou aos seus limites constitucionais, transferindo-se das Forças Armadas para a sociedade civil, como um cancro social, moral e político? Um povo foi dobrado de joelhos diante de um falso deus que nem mesmo seus fiéis adoram. Haveremos de carregar conosco a maldição dessa nobreza de falsos-senhores ou de pseudo-samurais, que não são coerentes com uma ética que os confinaria aos papeis de servidores da ordem e os proibiria de voltar suas armas contra uma coletividade indefesa, que lhes confiou as tarefas profissionais dos exércitos modernos?”.
No artigo, intitulado “As duas faces da verdade”, Florestan Fernandes aborda o que chamou de “o dia mais aziago da Assembleia Nacional Constituinte”: o dia em que a Constituinte negou aos militares democratas perseguidos pela Ditadura o direito à reparação:
“Os constituintes curvaram-se aos grão-senhores da ‘nova’ República e, com isso, ‘salvaram a democracia’. Nem mesmo a última esperança, contida na tímida emenda coletiva, encabeçada pelo senador Mario Covas, logrou varar o medo dos que se rebaixam a cumprir as instruções dos grupos de pressão (eufemisticamente designados como ‘lobbies’) das chefias militares. A emenda nem sequer evocava o dito “revanchismo” e tampouco repunha decididamente as coisas em seus lugares. Limitava-se a permitir que as vítimas indigitadas como objeto de ‘punições administrativas’ (sic!) pudessem recorrer à Justiça para pleitear as reparações materiais e morais a que fazem jus”.
Crítico ferrenho da maneira como foi convocada a Constituinte, em particular, e, no geral, da forma como nasceu a “nova” República (“o problema central é que há uma continuidade natural entre o atual governo e os anteriores”, disse durante o governo Sarney), Florestan Fernandes, em 1986, na época candidato a deputado constituinte, respondeu assim a uma repórter da Folha que lhe pediu uma espécie de mea culpa (“o senhor não admite que houve avanço?”):
“Eu não estou negando que houve avanço. Estou negando que este avanço tenha alcançado os limites que ele poderia ter atingido por outras vias, mais construtivas para uma verdadeira transformação democrática da sociedade brasileira”.
Mea culpa
O tempo passa, os tempos são outros, estamos em 2022, e paralelamente ao calendário eleitoral corre, cada vez mais disputado, um concurso do dia mais aziago de uma hodierna conciliação conservadora.
São três, e consecutivos, os candidatos mais fortes até agora – até agora: o dias 20, 21 e 22 de julho.
No dia 22, comentaristas de política da mídia, com forte pulsação jugular, mangas arregaçadas, semblantes acanalhados, mal disfarçada misoginia, e citando fontes do PT, exercitavam o velho hábito de enxovalhar Dilma Rousseff, agora por causa da firmeza e da altivez com que Dilma reagiu a mais uma cafajestada cometida contra ela por parte de um certo grão-senhor da “nova” República que ainda ontem saía em socorro de Jair Bolsonaro para depois comemorar em jantar alegre com bobo da corte.
Por causa, no fim das contas, da inquebrantável dignidade da ex-presidenta em meio às mais inaceitáveis recomposições com Eunicios, Geddeis, Romeros e Micheis, feitas em nome do “restabelecimento da democracia”, mas precisamente com as criaturas rastejantes que encabeçaram a destruição da democracia pouquíssimos anos atrás; com quem mancomunou-se, antes mesmo de Jair Bolsonaro, com o Partido Militar Golpista, reorganizado, por seu turno, como resposta dos adoradores de Carlos Alberto Brilhante Ustra à Comissão Nacional da Verdade, instalada por Dilma Rousseff.
Mas, como dizíamos, o páreo é duro no concurso do dia mais aziago da conciliação conservadora.
Na antevéspera, dia 20, a principal coluna de bastidores da política do Brasil, o Painel, da Folha, deu que em conversas de um interlocutor de Lula com os militares “é feito um mea culpa do período da ex-presidente Dilma Rousseff, quando a relação [com os militares] desandou, especialmente após a criação da Comissão da Verdade”…
Freixo sem freio
No dia anterior, 21, Marcelo Freixo, que já vinha com problemas mecânicos, por assim dizer, deu uma guinada tão forte à direita que perdeu o freio, atravessou o canteiro, rodopiou e, quando viu, seguia no fluxo contrário ao da boa viagem que fizera até ali, passando batido por 16 corpos da chacina no Alemão estirados em caçambas de utilitários parados no acostamento.
E ainda nem chegamos à campanha eleitoral, que começa em agosto. No conto “Assombrações de agosto”, Gabriel Garcia Márquez conta a história de outra viagem, esta à Itália, onde uma família depara com o espectro de Ludovico, grande senhor das artes e da guerra que havia construído na Toscana o castelo de sua desgraça.