Quem está em dúvida sobre fazer ou não fazer, ter ou não ter, pular ou não pular o Carnaval, entre outras questões sobre a pandemia ora postas neste país às cegas, sem dados básicos para enxergar dois palmos do cenário epidemiológico, seria bom dar aquela espiadinha nos Estados Unidos da América, onde do Oregon à Flórida, do Maine ao Arizona, da Califórnia a Nova York, a variante Ômicron já é responsável por quase a totalidade, praticamente por 100% dos novos casos de covid-19.

Os EUA vivem hoje o pior cenário desde o início da pandemia em se tratando de número de infectados pelo vírus Sars-Cov-2. Trinta e sete dos 50 estados americanos bateram recordes de testes positivos para covid na semana passada. As hospitalizações já ultrapassaram o pico da onda da variante Delta e continuam subindo aceleradamente.

Sobre os dados atuais de hospitalizados com covid-19, há um porém: com a capacidade de transmissão vertiginosa da variante, muitas pessoas que são internadas por outros motivos acabam sendo contaminadas pela Ômicron no ambiente hospitalar e acabam entrando na conta de internações covid. São os chamados “pacientes incidentais”. Estima-se que em alguns hospitais americanos eles sejam até metade dos internados com teste positivo para a doença.

Mas o fenômeno dos “pacientes incidentais” – que sempre existiu, mas está potencializado com a alta transmissibilidade da Ômicron – não consiste apenas em ruído nas estatísticas de internações da pandemia. A infecção de um paciente já hospitalizado pelo Sars-Cov-2 pode agravar a doença primária que o levou à internação. Além disso, representa risco adicional de contaminação de médicos e enfermeiros. Em suma, o fenômeno dos “pacientes incidentais” contribui para pressionar o sistema hospitalar.

E os hospitais dos EUA já estão, de novo, sobrecarregados e com falta de profissionais, em todo o país. Cerca de 25% dos hospitais americanos vivem hoje, por causa da Ômicron, uma escassez crítica de pessoal. Alguns já começam, de novo, a suspender cirurgias eletivas. Quase quatro mil funcionários da Northwell Health, maior provedora de saúde do estado de Nova York, estavam afastados com covid na última quinta-feira, 6. É o dobro do número registrado no primeiro semestre de 2020, início da pandemia, quando a covid pegou Nova York de jeito. Na Big Apple, num arrepiante déjà vu, já há relatos de ambulâncias errando de hospital em hospital, todos sobrecarregados.

Como mostrou na última sexta-feira, 7, o New York Times, ainda é muito cedo para tirar conclusões sobre o impacto real da Ômicron. Isto porque, como ensinaram as outras ondas da pandemia, um pico de contágios leva dias para impactar o número de internações e até três semanas para refletir em aumento significativo do número de mortes, seja pelo tempo que leva para as pessoas ficarem gravemente doentes, seja pelo delay burocrático entre uma morte e a inclusão dessa morte no sistema de contagem (quantas vezes, ao longo da pandemia, não foi ressaltado que o número de mortes anunciados num dia refletia na verdade a realidade de vários dias atrás?).

Faz cinco dias que os EUA registraram um milhão de novos casos de covid em 24 horas e especialistas dizem que o pico da Ômicron ainda não chegou. Portanto, e como diz o New York Times, sobre a Ômicron, “a tendência de mortes ainda não é clara”, por mais que se avolumem a cada dia os vaticínios de que se trata de uma variante “mais branda”, por causa de indicações de que o vírus Sars-Cov-2 em sua configuração Ômicron tende a se concentrar nas vias aéreas superiores, em vez de descer para os pulmões.

Mas ainda é o Sars-Cov-2 e há sinais preocupantes aparecendo. Enquanto morrem hoje de covid nos EUA 16% mais pessoas do que 14 dias atrás, no estado do Massachusetts, por exemplo, a variação é de 33% para cima. No estado de Connecticut, a alta é de 150%. A disparada de mortes já é de 153% no estado de Nova York e de 172% no de Nova Jersey.

São os estados do nordeste americano, onde em várias regiões a Ômicron já era responsável por mais de 90% dos novos casos de covid-19 na segunda quinzena de dezembro.

“Nas cidades de Nova York, Boston e Chicago – cidades com alguns dos primeiros surtos de Ômicron do país – as mortes vêm acontecendo em uma escala ligeiramente menor do que nos picos anteriores. Mas, por causa da contagem de casos extraordinariamente alta hoje nos EUA, até mesmo um número de mortes proporcionalmente menor em relação à curva de casos poderia ser algo devastador”, diz neste domingo, 9, o New York Times, em outro artigo, intitulado “Dados preliminares sobre o potencial da Ômicron nos EUA”.

Hoje, ao todo, os EUA vêm registrando cerca de 1.500 mortes por covid-19 todos os dias. Há um ano, nas primeiras semanas de janeiro de 2021, pior momento da pandemia no país, várias vezes foram mais de 3.500 mortos/dia. A queda na média de mortes, agora, no cenário de contágio incontrolável pela Ômicron, é portanto de algo em torno de 60% em relação a um ano atrás, quando a vacinação estava apenas começando. O índice de americanos com esquema vacinal completo, hoje, é precisamente de 62,5%.

Somando-se a esta crua coincidência de porcentagens a informação, sublinhada por autoridades de saúde de todo o mundo, de que a ampla maioria das mortes atuais por covid são de pessoas não vacinadas, levanta-se, inevitável, séria dúvida sobre o quão menos letal seria, de fato, a variante Ômicron; sobre até que ponto o que seria efeito mais brando da Ômicron pode ser na verdade efeito da vacinação – o efeito de reduzir casos graves e mortes, que é, afinal, o que tanto se esperava em populações que atingissem certo patamar de cobertura vacinal.

A dúvida é séria, muito séria, porque ainda existem os grupos de risco, mesmo com vacina no braço, e não são grupos pequenos; e porque tem uma turminha por lá – e por aqui, e por toda parte – que não está vacinada, e não se trata apenas dos anti-vaxx.

Na última terça-feira, 4, a média de novas internações diárias por covid de menores de 18 anos nos EUA era de 797 por dia – outro recorde e um aumento de 80% em relação à semana anterior. Grande parte deste público, crianças com idades entre 5 e 11 anos, só começou a ser vacinada em novembro, apenas dois meses atrás. Apenas 16% dos pequenos americanos nesta faixa etária estão com o esquema inicial de vacinação completo – duas doses ou dose única. O ano já tinha virado quando adolescentes ficaram elegíveis para a dose de reforço.

Na virada do ano, as internações por covid de crianças com menos de cinco anos de idade, não elegíveis para vacinação, disparou 48% em relação a meados de dezembro, para 4,3 crianças indo parar no hospital por infecção de Sars-Cov-2 a cada 100 mil.

Um cientista recentemente aposentado do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, Barney Graham, disse ao Washington Post que um vírus mais brando em adultos não necessariamente será um vírus mais brando em crianças. Graham, que trabalhou no desenvolvimento de vacinas contra a covid-19, ressaltou que a maior concentração da Ômicron nas vias aéreas é algo problemático para crianças muito pequenas, que tem vias aéreas, afinal, muito pequenas e podem enfrentar dificuldades extras para desobstruí-las.

Esta matéria do Washington Post é uma longa peça com um longo título: “A Ômicron pode ter um lado positivo ao aumentar a imunidade, dizem alguns especialistas. Mas não aposte nisso”. A matéria é sobre a hipótese de que a Ômicron é “o início do fim da pandemia”, ou seja, que tantas pessoas teriam algum nível de imunidade ao vírus, passada a onda Ômicron, que posteriormente seria muito difícil o Sars-Cov-2 voltar a fazer grandes estragos; é sobre a hipótese de que a Ômicron poderia ser um “golpe de sorte”.

Afora não ser propriamente de sorte, “brando”, o golpe que mata tantas pessoas todos os dias e que traz de volta o espectro do colapso hospitalar, o Post faz lembrar a quem, diante da Ômicron, anima-se a baixar a guarda:

“Não há evidências científicas de que o vírus está se estabelecendo em um estado permanentemente mais ameno. Uma nova variante poderia possivelmente combinar a transmissibilidade do Ômicron com a maior gravidade da doença causada por variantes anteriores, incluindo a variante Delta, ainda circulante”.

“Não há evidências científicas”, diz o Washington Post sobre o suposto “golpe de sorte” biológico, como quem deixa cair o guardanapo para advertir sobre a imprudência de, na pandemia, na agonia, na correria, acabar exagerando no wishful thinking.

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