O que diria Nelson Rodrigues sobre o futebol crivado de chips?

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Sobre a magnífica vitória do Brasil sobre o Chile na semifinal da Copa do Mundo de 1962, 4 a 2 em plena Santiago (dois de Garrincha, dois de Vavá), escreveu assim Nelson Rodrigues n’O Globo, no dia seguinte à partida:

“E o patético é que, quinta-feira, o vídeo-taipe de Brasil x Inglaterra nos dera uma visão deprimente do escrete. O povo não sabia como conciliar as duas coisas: o delírio dos locutores e a exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A verdade está com a imaginação dos locutores. E repito: a imaginação está sempre muito mais próxima das essências. Ao passo que o vídeo-taipe é uma espécie de lambe-lambe do Passeio Público, que retira das pessoas toda a sua grandeza humana e esvazia os fatos de todo o seu patético”.

O que diria Nelson Rodrigues sobre o circuito de câmeras que rastreia os “membros e extremidades” de cada jogador em campo para fins de “chamadas semiautomáticas de impedimento”, talvez por uma unha por cortar?

O que diria Nelson Rodrigues sobre a morte dos gritos de gol a plenos pulmões, assassinados em série por juntas de “idiotas da objetividade” que, a cada bola na rede, põe-se a caçar crimes de menor potencial ofensivo em replays de slow motion, para só depois moverem para cima ou para baixo seus polegares de césares high-tech?

O que diria Nelson Rodrigues da grande área transformada em garrafão, com uma chuva de penalties alcaguetados pelo VAR sob critérios que mais parecem os do “contato ilegal” do jogo de basquete?

O que diria Nelson Rodrigues sobre a Al Rihla, a bola da Adidas que precisa ser carregada na tomada? Ao contrário das urnas eletrônicas, a Al Rihla (“A Jornada”) traz no chip um código malicioso que, acionado, é capaz de arruinar aquilo que vale a pena no futebol e na vida: a emoção ao vivo, e a olho nu.

Comentários

Uma resposta

  1. Avatar de Sílvia Dafferner
    Sílvia Dafferner

    Gosto muito de seus textos. Este está maravilhoso com o resgate de um autor tão polêmico.

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