Na tarde da última segunda-feira, 3, dia seguinte às eleições gerais, comentaristas de política de um canal brasileiro de notícias 24 horas já tinham a receita para a campanha de Luis Inácio Lula da Silva frear no segundo turno a ascensão eleitoral de Jair Bolsonaro descoberta no primeiro: detalhamento da política econômica, anúncio do nome do PT para o ministério da Fazenda e mais Alckmin na campanha.
Simultaneamente, na tarde de segunda, aquela pontificação de que a extrema-direita será derrotada com mais picolé de chuchu era atropelada pelo primeiro rastilho de pólvora bolsonarista do segundo turno nas redes sociais, com bolsonaristas espalhando o vídeo de um “influenciador satanista”, um “mestre luciferiano” vestido de PT e anunciado um pacto com o diabo – união de diferentes religiões com segmentos satanistas e do ocultismo – pela vitória de Lula.
Não é a economia, estúpido; é “Deus, pátria e família” – e claro, o capeta.
Não se sabe ainda se o parlapatão que atende por Vicky Vanilla gravou o vídeo a soldo, como certos perguntadores do cercadinho, ou por mera porra-louquice mesmo. O que já se sabe é que na madrugada desta quarta-feira, 5, “mestre Vicky”, entusia$mado, invocou, ou melhor, convocou o país para assistir a uma transmissão nas próximas horas em que promete revelar “a verdadeira relação entre Lula, Bolsonaro, satanismo e maçonaria”…

A referência do influenciador dos infernos à maçonaria é alusão à viralização, nas redes, em ato contínuo à do vídeo de Vicky Vanilla, de um vídeo de um discurso de Bolsonaro na maçonaria e de uma foto de Bolsonaro em uma loja maçônica tendo ao fundo, pregado na parede, uma gravura de Baphomet, ídolo pagão associado ao diabólico.
O vídeo é verdadeiro. A foto é manipulada. A Agência Lupa, de “fact-checking”, verificou que “na imagem original não há nenhum quadro na cena, apenas a parede branca e duas bandeiras, uma nacional e outra representando o Grande Oriente do Brasil – Distrito Federal”.
A foto, informa a Lupa, foi feita em março de 2014 e mostra uma reunião maçônica realizada em Brasília na qual o general Augusto Heleno palestrou defendendo o “movimento militar de 1964”. A Lupa esclarece que a maçonaria “não é um grupo satânico”. Porém, mais realista que o príncipe das trevas, a Lupa emenda que “seus integrantes defendem os princípios da liberdade, da democracia, da igualdade e da fraternidade”.
“Não é bem assim”, como diz o selo que as próprias agências de checagem costumam colar em notícias e afirmações imprecisas, descontextualizadas, distorcidas.
Aquela reunião maçônica de 2014 em Brasília, por exemplo, não foi mero encontro ordinário de caráter filosófico e filantrópico em que o general Heleno defendeu, vadio, lá pelas tantas, o golpe de 64; foi um evento realizado pela loja Grande Oriente do Distrito Federal (GODF) justamente no dia 31 de março daquele ano, aniversário de 50 anos do golpe, para comemorar o golpe e abrir o microfone para Heleno fazer uma “viagem à história do período anterior a 1964, sendo interrompido várias vezes por salvas de palmas”.
E para Heleno tentar desqualificar assim a então vigente Comissão Nacional da Verdade: “É como se pegasse a torcida do Fluminense e do Vasco e escolhesse aqueles das torcidas mais fanáticas e mandasse escrever a história do Flamengo”.
Nesta foto, sim, aparece Baphomet, que na época era apenas um deputado obscuro, mas parece que teve lugar de honra naquela cerimônia – e com cara não de bode, mas de cavalo esperando ser cavalgado:

Heleno ganhou uma “placa alusiva à relevante data”, com os dizeres: “O Grão-Mestre do Grande Oriente do Distrito Federal – GODF, tem a elevada honra de passar às mãos do Excelentíssimo Senhor General de Exército Augusto Heleno Ribeiro Pereira, esta placa de agradecimento, através da qual expressa o profundo sentimento de gratidão de toda a comunidade maçônica do Distrito Federal, por sua enriquecedora contribuição aos nossos ideais democráticos, através da brilhante e histórica palestra proferida no dia 31 de março de 2014, em Brasília-DF, sob os auspícios da Obediência Distrital”.
Naquele mesmo dia, 31 de março de 2014, quinquagésimo aniversário do golpe militar de 1964, a loja maçônica paulistana Força, Lealdade e Perseverança, recheada de militares, organizou um ato e divulgou um manifesto dizendo que “devemos saudar a Revolução Democrática. É voz geral entre os esquerdistas que 1964 jamais será esquecido. Ótimo, nós, civis e militares que a apoiamos, também não a esqueceremos. A Revolução de 1964 será sempre uma árvore boa”.
É este o verdadeiro demônio que habita certas lojas da maçonaria, e a referência a “uma árvore boa” é realmente interessante.
Mais de 20 anos antes, em 1993 – repito: em 1993 -, o então deputado federal Vital do Rego atribuiu ao “Grupo Araucária”, uma das entidades de extrema-direita formada por civis e militares no período da redemocratização, uma ameaça de morte recebida por ele, Vital, após ter sido o responsável pela abertura de uma ação penal pública contra um colega de legislatura por incitação ao fechamento do Congresso com um novo golpe militar.
“Com erros ortográficos, a carta traz uma ameaça sutil de fechamento do Congresso se Bolsonaro perder o mandato, segundo Vital do Rego. O texto acrescenta que não é necessário colocar assinaturas porque ‘não seria justo com 150 milhões de brasileiros que também apoiam Bolsonaro'”, dizia uma reportagem intitulada “Deputado denuncia militares por ameaça”, publicada no Jornal do Brasil no dia 27 de julho de 1993.
Repito, de novo: isto em 1993.
Naquele manifesto de 2014 da loja maçônica paulistana Força, Lealdade e Perseverança, os maçons-milicos, milicos-maçons falaram em “crescente revolta silenciosa” com os trabalhos da Comissão da Verdade:
“Pensam que os integrantes das Forças Armadas – quietos, calados e parecendo subservientes – assistem passivamente aos acontecimentos atuais com sua consciência adormecida. Não é bem isso que está acontecendo”.
‘A Democracia é…’
Em 1º de abril daquele ano de 2014, dia seguinte àquela cerimônia maçônica em Brasília com presenças de Augusto Heleno e Jair Bolsonaro e para celebrar o aniversário do golpe, Bolsonaro protagonizou o famoso episódio em que chamou uma repórter de SBT de “idiota” e “analfabeta”, após ser questionado por que insistia em dizer que o golpe nunca aconteceu.
O episódio se deu logo após Bolsonaro tumultuar uma sessão solene da Câmara dos Deputados para debater os 50 anos do golpe militar. Muitos deputados viraram-se de costas quando Bolsonaro subiu à tribuna para defender a ditadura. “Vocês vão ser torturados com algumas verdades aqui”, vociferou o fã de torturadores. O presidente da sessão, Amir Lando, decidiu então encerrar os trabalhos antes do previsto, mesmo com muitos ainda por discursar, dizendo que aquele comportamento não era permitido pelo regimento da casa.
Aqui, um detalhamento útil a quem quiser entender como foi possível este país chegar no pé em que este país se encontra: naquele 1º de abril de 2014, ao encerrar a sessão dizendo que o regimento não permitia aquele tipo de comportamento em plenário, Amir Lando não se referia ao comportamento de Jair Bolsonaro, mas sim ao dos deputados que lhe deram as costas: “Democracia é conflito – disse Lando, olimpicamente – as partes têm que ser ouvidas”.
Poucas semanas depois, no dia 25 de abril de 2014, Jair Bolsonaro foi a uma reunião do PP, ao qual era filiado, para pedir a indicação do seu nome pelo partido para concorrer à presidência da República nas eleições daquele ano. “Não sei se vão aceitar, mas me candidatei”, disse Bolsonaro, na época, ao jornal O Globo.
A candidatura presidencial em 2014 não vingou, mas, meses depois, em novembro, logo após a reeleição de Dilma Rousseff, uma Organização Militar, a Academia Militar das Agulhas Negras, permitiu que Jair Bolsonaro se dirigisse a uma turma de aspirantes a oficias, dentro das instalações da Aman, para anunciar que seu objetivo era virar o país à direita quatro anos mais tarde, nas eleições de 2018. “Alguns vão morrer pelo caminho”, vaticinou. Foi aplaudido e saudado como “líder!”.
Poucos dias depois, Bolsonaro protagonizou outro episódio famoso na Câmara dos Deputados. “Só não te estupro porque você não merece”, disse, do alto da tribuna da Câmara, à deputada petista Maria do Rosário, na véspera da apresentação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em cuja criação Maria do Rosário tivera participação destacada.
Antes dos ataques a Maria do Rosário, Bolsonaro protagonizou embates que nem tantos se lembram mais com um outro parlamentar, o senador (na época, do Psol) Randolfe Rodrigues, com quem chegou a trocar sopapos em 2013.
Foi Randolfe Rodrigues quem, em junho de 2013, apresentou no Senado um projeto de lei para permitir que militares e civis da ditadura civil-militar responsáveis por violações de direitos humanos fossem punidos por seus crimes; para “adequar a Lei da Anistia à Carta de 1988 e ao sistema internacional de direitos humanos”.
Após ser aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa e pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, a matéria, que estava pronta para votação na Comissão de Constituição e Justiça, jamais foi levada à pauta de votações da CCJ. Estacionou assim, “pronta para pauta na comissão”, em outubro de 2015, justamente quando os jornais começaram a publicar “tudo o que você precisa saber sobre o processo de impeachment”. E nunca mais andou.
No dia 21 de dezembro de 2018, às vésperas da posse de Jair Bolsonaro e de seu vice – que, aliás, é maçom-milico, milico-maçom -, o Projeto de Lei do Senado número 237 de 2013 foi arquivado por motivo de “final da legislatura, nos termos do § 1º do art. 332 do Regimento Interno”.
O parágrafo 1º do artigo 332 do regimento interno do Senado da República prevê que “será automaticamente arquivada a proposição que se encontre em tramitação há duas legislaturas, salvo se requerida a continuidade de sua tramitação por 1/3 (um terço) dos Senadores, até 60 (sessenta) dias após o início da primeira sessão legislativa da legislatura seguinte ao arquivamento, e aprovado o seu desarquivamento pelo Plenário do Senado”.
‘Viu o que eu fiz hoje?’
E para quem ainda acha, mesmo após Vicky Vanilla e, digamos, a questão maçônica, que o fascismo será derrotado anunciando ministro da Fazenda antes da eleição, fiquem com um trecho de “O negócio do Jair”, livro sobre o Eminente Grão-Mestre Arquiteto do Dinheiro Vivo recém-lançado pela jornalista Juliana Dal Piva:
Em 23 de setembro de 2013, quatro membros da Comissão da Verdade do Rio foram ao antigo Doi-Codi do Rio de Janeiro para uma inspeção do local. O quartel da rua Barão de Mesquita, na Tijuca, funciona até hoje como uma unidade militar e foi sede de parte dos horrores da ditadura. Espancamentos, estupros, torturas com jacarés e uma jiboia, assassinatos… A lista é terrivelmente longa.
Com os desdobramentos da atuação da CNV, Bolsonaro encampou a defesa dos colegas de farda daqueles tempos. Ele já havia se aproximado de alguns dos militares envolvidos ainda nos anos 1980, quando entrou em atrito com o general Leônidas Pires Gonçalves e acabou caindo nas graças do general Newton Cruz, do ex-presidente João Figueiredo e, mais adiante, até do general Nilton Cerqueira.
Os integrantes da comissão chegaram ao local acompanhados de presos políticos e alguns parlamentares. A visita havia sido agendada com antecedência, vencendo a resistência do Exército, e Jair Bolsonaro não integrava a lista da comissão. Mesmo assim, ele foi e tentou forçar a entrada. Os senadores João Capiberibe (PSB-AP) e Randolfe Rodrigues (Psol-AP) o barraram, dizendo que ele não era bem-vindo.
‘Olha só quem quer me impedir de entrar no meu quartel!’, Bolsonaro retrucou. Depois chamou Rodrigues de ‘moleque’, abaixou o corpo e lhe deu um soco no estômago, segundo o senador. A confusão foi grande. Horas mais tarde, quando o episódio já dominava o noticiário, Bolsonaro telefonou para uma pessoa, ao lado de quem eu por coincidência estava, e a certa altura comentou o episódio. Falava tão alto que não pude deixar de ouvir: ‘Viu o que eu fiz hoje? Com aquilo ganhei uns 400 mil votos’.