No ano passado, em meio à fermentação do 8/1, os nomes de um major da reserva do Exército e de um analista de dados vinculado ao PL de Jair Bolsonaro apareceram em uma pasta de armazenamento e partilha de arquivos disponibilizada na internet pelo autor de um famigerado ataque à credibilidade do sistema brasileiro de votação eletrônica, ataque este feito do exterior, logo após as eleições, e que serviu para dar impulso às manifestações golpistas que se formavam na frente de quartéis em todo o país.
No dia 4 de novembro de 2022, cinco dias depois do segundo turno, o “consultor” argentino Fernando Cerimedo, ligado a Eduardo Bolsonaro, fez uma transmissão ao vivo na internet, desde Buenos Aires, para apresentar um relatório apócrifo segundo o qual a massiva votação “do candidato 13” no Nordeste poderia ser fruto de um “potencial algoritmo” e que “o candidato 22 teria ganhado as eleições com ao menos 50,5% dos votos válidos”.

A live de Cerimedo, intitulada “Brazil Was Stolen” (“O Brasil foi roubado”), imediatamente repercutiu como um rastilho de pólvora nos grupos bolsonaristas de mensagens e insuflou a afluência aos acampamentos golpistas que pediam “intervenção” das Forças Armadas contra o resultado eleitoral. Na frente dos quartéis, não tardou para surgir um certo staff distribuindo cartazes com a bandeira do Brasil em preto e branco e a hashtag da live.




No dia seguinte à live “Brazil Was Stolen”, o então deputado federal Coronel Tadeu, um dos mais radicais do bolsonarismo, surgiu lado a lado com Cerimedo em outra transmissão ao vivo na internet, também diretamente de Buenos Aires. Nesta outra transmissão, Coronel Tadeu disse que “por coincidência” estava na capital argentina e se referiu a Fernando Cerimedo como “Fernando Sem Medo”, e o chamou de “herói”.
No dia 11 de dezembro, uma semana após a live “Brazil Was Stolen”, Fernando Cerimedo publicou no Twitter o link para uma pasta compartilhada do Google Drive onde estavam armazenados o que ele chamou de “arquivos de dados para auditoria”. No dia seguinte, o cientista de dados Marcelo Oliveira chamou atenção, também no Twitter, para o fato de que um dos sete arquivos contidos na pasta era de propriedade de um certo major Angelo Denicoli, figura ligada a Jair Bolsonaro.
Naquele mesmo dia, 12 de dezembro, a Folha de S.Paulo abordou o assunto na matéria “Arquivos indicam elo de fake news eleitoral de argentino com PL e Bolsonaro”, repercutindo o que Marcelo Oliveira havia notado. E Marcelo Oliveira havia notado também outro nome na pasta do Google Drive compartilhada por Fernando Cerimedo: Eder Balbino.
Éder Balbino é sócio-administrador da Gaio Innotech, mantenedora e operadora da plataforma Gaio Analytics. A Gaio Analytics colaborou com o Instituto Voto Legal (IVL) na produção do relatório encomendado pelo PL para tentar tumultuar a eleição presidencial de 2022.
Com o relatório do IVL/Gaio debaixo do braço, o PL pediu ao TSE a anulação dos votos de 59% das urnas eletrônicas no segundo turno – só no segundo turno, após o PL eleger uma bancada de 100 deputados federais no primeiro. E por que só no segundo turno, tecnicamente, por assim dizer? A explicação do presidente do partido, Valdemar Costa Neto, foi esta:
“Nós contratamos uma empresa de homens altamente qualificados para poder acompanhar as eleições. E eles, por coincidência, e talvez por tecnologia, conseguiram atingir esse objetivo de conseguir algo palpável no segundo turno. No primeiro, eles não pegaram. No segundo turno, eles aumentaram a equipe. Trouxeram um gênio lá de Uberlândia e que ajudou muito a gente. E aí ele descobriu esse problema que o nosso pessoal não tinha descoberto”.
A Gaio Innotech fica na Rua Professor Antonius Maria, 61, Shopping Park I, Uberlândia, Minas Gerais.
A matéria “Arquivos indicam elo de fake news eleitoral de argentino com PL e Bolsonaro”, publicada em dezembro na Folha, foi a única, até hoje, publicada na imprensa brasileira sobre o fato de o major Angelo Denicoli e Eder Balbino terem aparecido na pasta do Google Drive compartilhada por Fernando “Brazil Was Stolen” Cerimedo, ainda que pelo menos Denicoli já tivesse frequentado o noticiário, de maneira infausta, durante o governo Bolsonaro.
‘Espião’ de Bolsonaro
O major Angelo Denicoli foi apresentado ao Brasil em maio de 2020, quando a imprensa repercutiu que o então novo diretor de Monitoramento e Avaliação do SUS, Denicoli, nomeado pelo general Pazuello, publicava em suas redes sociais informações falsas sobre o uso da hidroxicloroquina para tratamento da covid-19.
Um ano depois, em maio de 2021, a imprensa informou também que o Twitter havia tarjado como fake news um post de um diretor do Ministério da Saúde, Denicoli, que atribuía falsamente a um jornal chileno a publicação de uma charge em que Bolsonaro era retratado de arma em punho impedindo a entrada do comunismo no Brasil.
A Diretoria de Monitoramento e Avaliação do SUS do Ministério da Saúde é vinculada à Secretaria Executiva da pasta. Significa que Angelo Denicoli era subordinado ao coronel Élcio Franco, antigo secretário-executivo de Pazuello; “braço direito de Braga Netto” flagrado tramando golpe em conversas extraídas do celular de Mauro Cid.
Em junho de 2021, Angelo Denicoli foi exonerado do Ministério da Saúde e, ato contínuo, nomeado assessor da presidência da Petrobras, na época ocupada pelo general Silva e Luna.
Em maio de 2022, a repórter Malu Gaspar informou no Globo que Denicoli atuava como “espião” de Jair Bolsonaro na Petrobras; que Denicoli foi um dos “ex-militares que o presidente colocou em postos-chave na companhia” no âmbito das pressões que Bolsonaro fazia para a troca de diretores da estatal.
Em março de 2023, o deputado bolsonarista Luiz Lima (PL-RJ) disse que foi Denicoli quem o convidou para fazer parte da nominata do PSL para deputado federal no Rio de Janeiro em 2018:
“Eu gostaria hoje de fazer um agradecimento especial. Nunca deixarei de agradecer ao presidente Bolsonaro por ter me dado a oportunidade de ter me tornado candidato a deputado federal, em 2018. Quero agradecer muito ao major Denicoli do Exército brasileiro, por ter me indicado ao presidente Bolsonaro, fruto de um trabalho desenvolvido dentro da Secretaria Nacional de Esporte, nos anos de 2016 e 2017, durante o governo Temer”.


À Folha, Fernando Cerimedo disse que não conhece Angelo Denicoli e Eder Balbino. “Você está exibindo arquivos de cópia”, disse Cerimedo à repórter Renata Galf. Denicoli e Balbino não se pronunciaram.
“Apesar de o arquivo de Denicoli, de fato, ter o mesmo nome de outro arquivo de Cerimedo junto ao termo ‘Cópia de’, a data da última modificação indica que ela já tinha sido feita ao menos em 17 de novembro. Mesma data em que Eder Balbino editou dois dos arquivos de propriedade de Cerimedo”, disse a Folha.
Cinco dias depois das modificações, em 22 de novembro, o PL apresentou o relatório do IVL/Gaio. No dia 27 daquele mês, a mesma Folha publicou que os “Argumentos de relatório golpista do PL apareceram antes em live de argentino”.
Três relatórios
Porém, não foram dois, mas três os relatórios/ataques contra o sistema brasileiro de votação eletrônica desferidos em novembro, após as eleições, e todos com alegações tão infundadas quanto parecidas.
No dia 4, Fernando Cerimedo apresentou a live/relatório “Brazil Was Stolen”. A live/relatório levantou a suspeita de que “mecanismos adicionais/potencializados” pudessem explicar uma suposta “presença gritantemente maior de urnas com zero ou próximo a zero votos para o candidato 22 em modelos de urna não-2020”.
No dia 9, o Ministério da Defesa divulgou o relatório da Equipe das Forças Armadas de Fiscalização do Sistema de Votação Eletrônica (EFASEV). O relatório da EFASEV afirmou que “a incapacidade de o Teste de Integridade e do Projeto-Piloto com Biometria reproduzirem, com fidelidade, as condições normais de uso das urnas eletrônicas que foram testadas não permite afirmar que o SEV está isento de um código malicioso que possa alterar o seu funcionamento”.
No dia 22, o PL divulgou o “relatório técnico” intitulado “Logs Inválidos das Urnas Eletrônicas”, com direito a entrevista coletiva e representação no TSE. O relatório diz que as urnas eletrônicas fabricadas em 2009, 2010, 2011, 2013 e 2015 “exibem um valor espúrio no lugar do valor correto do código de identificação da urna eletrônica”, e emenda que os resultados gerados por esses modelos de urnas eletrônicas “deveriam ser desconsiderados na totalização das eleições no segundo turno, em função do mau funcionamento destas urnas”.
Desde antes, porém, o PL já vinha testando o terreno, abrindo espaço para contestar o resultado eleitoral. No dia 28 de setembro, a quatro dias do primeiro turno, o partido divulgou um documento de duas páginas intitulado “Resultados da Auditoria de Conformidade do PL no TSE”. O documento tinha sido encaminhado ao TSE dias antes e antecipava, com outras palavras, a conclusão do relatório das Forças Armadas divulgado após o segundo turno:
“O quadro de atraso encontrado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), referente à implantação de medidas de segurança da informação mínimas necessárias, gera vulnerabilidades relevantes. Isto poderá resultar em invasão interna ou externa nos sistemas eleitorais, com grave impacto nos resultados das eleições de outubro”.
Na véspera, 27 de setembro, Valdemar Costa Neto e o então ministro da Defesa, Paulo Sergio Nogueira, tinham se reunido no prédio do Ministério da Defesa, segundo constava na agenda do ministro. A pauta da reunião não foi divulgada.
Além disso, de volta a novembro, uma semana antes da divulgação oficial e do encaminhamento ao TSE do relatório “Logs Inválidos das Urnas Eletrônicas”, o documento “vazou” para o site O Antagonista. Isto foi no dia 15 de novembro, mesmo dia em que Fernando Cerimedo criou a pasta no Google Drive que continha arquivos associados aos nomes do major Angelo Denicoli e de Eder Balbino.
Continha. Não contém mais.
Pasta voltou. Denicoli e Balbino, não
Na matéria publicada pela Folha em dezembro – “Arquivos indicam elo de fake news eleitoral de argentino com PL e Bolsonaro” -, a repórter Renata Galf informou que a pasta do Google Drive tinha ficado indisponível após o contato da reportagem com Fernando Cerimedo.
Hoje, a pasta está novamente liberada para acesso, mas voltou sem o arquivo em nome do major Angelo Denicoli e sem o nome de Eder Balbino como autor de modificações. A matéria da Folha foi publicada às 23h03 do dia 12 de dezembro. Hoje, com a pasta de volta, é possível verificar que Cerimedo fez alterações nela às 18h35, 18h57 e 19h34 daquele mesmo dia, horas antes da publicação da reportagem.


