Generais Richard Nunes e Braga Netto (Foto: Akemi Nitahara/Agência Brasil).

Em um vídeo gravado na última sexta-feira, 18, na frente do Palácio da Alvorada, o general Walter Souza Braga Netto aparece pedindo que “não percam a fé” – num golpe. Dirigia-se, entre outros, a uma líder de bloqueio de estrada no Rio Grande do Sul e ao vice-presidente de uma empresa denunciada por assédio eleitoral, como mostrou este Come Ananás neste sábado, 19.

O vídeo viralizou e levou o assunto “Braga Netto na cadeia” aos trending topics do Twitter. Passou despercebida, porém, uma frase solta dita no vídeo por um terceiro esbirro do golpismo e que é um pormenor não propriamente revelador, mas rememorativo.

No vídeo, antes de Braga Netto tentar reconfortar uma mulher choramingona de que “a gente tá na chuva”, numa referência às concentrações na frente de quartéis sem que venha a quartelada, um homem diz assim ao candidato a vice na chapa derrotada – e inconformada – na eleição para a presidência da República:

“Estamos na frente do Comando Militar do Nordeste, com o general Richard”.

Posto que fortuita, pode ser que esta frase seja altamente emblemática, significativa, indiciária dos motivos que movem um general da reserva a apostar a pele, o pescoço e a cabeça em flagrantes articulações golpistas que aparentemente valeriam o risco a tão somente Jair Bolsonaro e família; aos Bolsonaro, que, fora do poder, estariam, estarão vulneráveis a imputações por crimes comuns, de lesa-pátria e de lesa-humanidade.

Sempre no vídeo da última sexta, Braga Netto, com a mão no ombro do homem que mencionou o “general Richard”, grita de longe para jornalistas restritos a um cercadinho: “não vou falar com a imprensa não!”. Vamos voltar, no entanto, a uma ocasião em que Braga Netto falou com a imprensa, para começo de conversa com o fio e os rastros dessa história.

Em de janeiro de 2019, pouco depois de encerrada a intervenção federal chefiada por Braga Netto no Rio de Janeiro, o general disse o seguinte à revista Veja sobre o porquê do assassinato de Marielle Franco, que foi morta logo no início da intervenção, em março de 2018: “aquilo foi uma má avaliação deles. Avaliaram mal, acharam que ela é um perigo maior do que o que ela era”.

“Um perigo para quem?”, perguntou, estupefato, o repórter Leandro Resende, da Veja. “Não vou entrar nesse mérito”, fechou-se, impávido, o general.

Braga Netto não respondeu, mas o também general de exército Richard Fernandez Nunes, braço direito de Braga Netto na intervenção, já havia respondido a esta pergunta, menos de um mês antes, também numa entrevista à imprensa.

Para quem perdeu o fio da meada, Richard Fernandez Nunes, atual comandante militar do Nordeste, é o “general Richard” referido por um “patriota” a Braga Netto na frente do Palácio do Alvorada.

Há poucos dias, um subordinado do general Richard, o general André Luiz Ribeiro Campos Allão, comandante da 10ª Região Militar do Exército, em Fortaleza, disse diante da tropa que as manifestações golpistas na frente de quartéis devem ser “protegidas” contra o Poder Judiciário, e que “o mal vai ser vencido com o bem”. Não se tem notícia de tenha sido chamado às falas por violação do Regulamento Disciplinar do Exército ou por crime de incitação.

Há quatro anos, numa entrevista jornal O Estado de S.Paulo, o “general Richard” afirmou que Marielle Franco foi morta porque foi percebida como uma ameaça a negócios milicianos de grilagem de terras na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Boca de siri

Come Ananás reproduz abaixo um trecho, o trecho sobre o assassinato de Marielle Franco, da entrevista do general Richard Nunes ao repórter Marcelo Godoy publicada no Estadão no dia 14 de dezembro de 2018.

General, o caso Marielle foi uma afronta à intervenção?

Não foi. O que entendo hoje é que os criminosos superestimaram o papel que a vereadora poderia desempenhar. Era um crime que já estava sendo planejado desde o final de 2017, antes da intervenção. Isso aí nós temos já; está claro na investigação. O que aconteceu foi o contrário. Os criminosos se deram conta da dimensão que tomou o crime por ter sido cometido na intervenção. Não podemos entender como afronta porque eu assumi em 27 de fevereiro. E dei posse ao comandante da PM no dia 14 de março, que foi o dia do crime. Estávamos iniciando um trabalho. E hoje com os dados de que dispomos de 19 volumes de investigação fica claro que se superestimou o papel que ela desempenhava.

Que papel?

Ela estava lidando em determinada área do Rio controlada por milicianos, onde interesses econômicos de toda ordem são colocados em jogo. No momento em que determinada liderança política, membro do legislativo, começa a questionar as relações que se estabelecem naquela comunidade, afeta os interesses daqueles grupos criminosos. É nesse ponto que a gente precisa chegar, provar essa tese, que está muito sólida. O que leva ao assassinato da vereadora e do motorista é essa percepção de que ela colocaria em risco naquelas áreas os interesses desses grupos criminosos.

Como ela colocaria em risco?

A milícia atua muito em cima da posse de terra e assim faz a exploração de todos os recursos. E há no Rio, na área oeste, na baixada de Jacarepaguá problemas graves de loteamento, de ocupação de terras. Essas áreas são complicadas.

A atuação dela seria de fazer…

Uma conscientização daquelas pessoas sobre a posse da terra. Isso causou instabilidade e é por aí que nós estamos caminhando. Mais do que isso eu não posso dizer.

“Mais do que isso eu não posso dizer”, trancou-se Richard Nunes no fim de 2018, na entrevista ao Estadão, referindo-se às motivações e aos mandantes do assassinato de Marielle Franco. De fato, até hoje mais não disse, este general da intervenção que chegou a ser cotado para assumir o comando do Exército em substituição ao general Paulo Sergio Nogueira, quando Paulo Sérgio sucedeu a Braga Netto no Ministério da Defesa para iniciar uma guerra contra o sistema brasileiro de votação eletrônica.

General Richard: “mais do que isso eu não posso dizer”. General Braga Netto: “não vou entrar nesse mérito”.

Pode ser mais do que ordinária coincidência, mais que mero fraseado familiar a semelhança entre essas duas vezes em que os generais da intervenção fizeram boca de siri e o mais-não-digo protagonizado por Braga Netto na última sexta, na frente do Alvorada, diante de soldadinhos do golpismo:

“Não percam a fé. É só o que eu posso falar pra vocês agora”.

Dinheiro vivo, Marielle morta

Em abril de 2020, início de pandemia, o Intercept Brasil publicou uma reportagem à qual até hoje, passado o pior da covid-19, não se deu a merecida atenção, se não por mais nada, pelo que disse, lá atrás, o general Braga Netto sobre “eles avaliaram mal” e especialmente pelo que falou o general Richard Nunes ao Estadão sobre a motivação miliciano-imobiliária da execução de Marielle Franco.

Naquela reportagem, o Intercept Brasil publicou informações sigilosas de um inquérito do Ministério Público do Rio segundo o qual Flávio Bolsonaro lucrou com a construção ilegal de prédios erguidos pela milícia em áreas griladas em Rio das Pedras e na Muzema e financiados com dinheiro das rachadinhas de Flávio na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).

Segundo o MPRJ, o esquema de Flávio Bolsonaro neste filo criminoso era gerenciado por Fabricio Queiroz e envolvia os chefes milicianos Adriano da Nóbrega e Ronald Pereira. Todos os três ex-policiais militares. Todos os três ligados à família Bolsonaro. Todos os três ligados especialmente a Flávio.

Tudo financiado com dinheiro público transformado em, digamos, “moeda corrente nacional”. Dinheiro vivo. “Qual é o problema?”, diria Jair Bolsonaro.

A descoberta do esquema de construção irregular em terrenos grilados e irrigado com dinheiro da rachadinha de Flávio Bolsonaro na Alerj foi feita justamente em meio aos desdobramentos das investigações sobre os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Diz o Intercept:

“A ligação do ex-capitão [Adriano] com as pequenas empreiteiras envolvidas no boom da verticalização em Rio das Pedras e Muzema foi levantada em meio à investigação sobre as execuções da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018. Foi a partir das quebras de sigilos telefônicos e telemáticos dos integrantes do Escritório do Crime que os promotores descobriram que o grupo paramilitar havia evoluído da grilagem de terras à construção civil, erguendo prédios irregulares na região e, assim, multiplicando seus lucros”.

Quando passou o comando do Exército, em 2019, nos primeiros dias do governo Bolsonaro, o general Eduardo Villas Bôas disse que “três personalidades se destacaram para que o rio da História voltasse ao seu curso normal. O Brasil muito lhes deve”.

Referia-se a Jair Bolsonaro, Sérgio Moro e Braga Netto.

“Todos demonstraram que nenhum problema no Brasil é insolúvel”, disse Villas Bôas, necromante do golpismo de coturno e pai do bolsonarismo militar.

O rio das Pedras e o rio Muzema, além de fazerem parte da sub-bacia de Jacarepaguá, compõem, quem diria, a bacia hidrográfica do “rio da História”.

“Não percam a fé”, disse o ex-interventor a uma claque golpista na última sexta.

Não perca, isto sim, o fio dessa história.

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