No dia 27 de fevereiro, três dias após o início da invasão da Ucrânia pela Rússia e a exatos três meses da data prevista para o lançamento mundial do filme “Top Gun 2”, a conta oficial do governo de Volodymyr Zelensky no Twitter publicou um vídeo de um único Mig-29 ucraniano abatendo meia dúzia de caças russos no céu de Kiev. O piloto foi apresentado como “primeiro ás do século XXI” e apelidado de “o Fantasma de Kiev”.

Somados os alcances logrados no Twitter, Facebook, YouTube e Tiktok, as façanhas do “Fantasma de Kiev” já foram vistas por mais de um bilhão de pessoas. O ex-presidente da Ucrânia Petro Poroshenko, que foi eleito na esteira do Euromaiden de 2014 – revolta popular impregnada do fascismo – e contou com Joe Biden em sua posse, compartilhou em sua conta no Twitter uma foto do “fantasma” repetindo a mais famosa imagem de divulgação do filme “Top Gun – Ases Indomáveis”, de 1986.

O “Fantasma de Kiev” e Maverick, personagem de Tom Cruise em Top Gun.

Não demorou para que uma reportagem da Reuters mostrasse que o vídeo do “Fantasma de Kiev” derrubando caças russos foi produzido a partir de um simulador de combate de videogame. A foto do “fantasma” postada por Poroshenko, por seu turno, é uma imagem de divulgação do Ministério da Defesa ucraniano datada de 2019. Até hoje, porém, o vídeo postado na conta oficial do governo da Ucrânia e a foto postada por Poroshenko estão no ar, e sem nem uma bandeirinha do Twitter sinalizando “conteúdo manipulado” ou “fora de contexto”.

Ilha da Cobra: ‘a informação chega e a gente repassa’

Outro caso foi o dos “mártires da Ilha da Cobra”, no Mar Negro. No dia 25 de fevereiro, segundo dia de guerra, Zelensky anunciou as mortes de 13 militares ucranianos baseados numa ilha rochosa e desolada que teriam recusado a rendição a um navio russo, após receberem um sinistro ultimato, e por isso teriam sido bombardeados de forma inclemente com o fogo de Moscou.

Naquele dia, um áudio mostrando militares ucranianos da Ilha Cobra mandando o navio russo “se foder”, seguindo-se o som de uma explosão, foi exibido na GloboNews por uma âncora consternada com o destino mortal dos resistentes. Foi a mesma que anos atrás disse que “jornalismo é assim: a informação chega e a gente repassa”, e que há poucos dias afirmou que “a nossa geração já viu muitas guerras, mas esta [da Ucrânia] é a primeira por questões geopolíticas”.

Três dias depois, após a Rússia desmentir as mortes, a própria Marinha ucraniana reconheceu que os fuzileiros navais e guardas de fronteira da Ilha da Cobra estavam, estão vivos, feitos prisioneiros de guerra pelas forças russas.

Chamando mamãe

Na tarde desta quinta-feira, 3, mesmo depois de tudo isso, ainda que à luz deste recentíssimo histórico, a GloboNews exibia – “a informação chega, a gente repassa” – um vídeo divulgado pelo governo Zelensky mostrando o que seriam soldados russos feitos prisioneiros pelas forças ucranianas falando com familiares por aplicativos de vídeo chamada, aos choros, comendo bolo e tomando chá. A Ucrânia diz que está convidando mães de soldados russos a irem buscar seus filhos capturados.

Esqueça “Top Gun” e pense em “Mera Coincidência”, filme de 1997 com Dustin Hoffman no qual os EUA fabricam um prisioneiro resgatado de uma guerra – também fabricada – na Albânia.

Na última segunda-feira, 28 de fevereiro, o embaixador da Ucrânia na ONU, Sergiy Kyslytsya, divulgou mensagens de texto que teriam sido tiradas do telefone de um outro prisioneiro russo. Uma das mensagens divulgadas por Kyslytsya dizia: “Mamãe, estou na Ucrânia. Estou com medo”. Que tudo pareça uma campanha para apresentar os soldados russos como jovens mal treinados que não querem lutar, isto deve ser também mera coincidência…

Se na guerra a primeira vítima é a verdade, na guerra da informação o primeiro a tombar, pelo visto, é o projeto “Fato ou fake”.

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1 Comentário

  1. Muito bom o texto. O “Fato ou fake” foi criado exatamente para combater notícias falsas, divulgadas na linha “a informação chega e a gente repassa”. Quando o criador do “Fato ou Fake” adota essa linha de repassar a informação, sem checar, a sua confiabilidade deixa de existir.

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