Na imagem que ilustra este artigo, a foto de cima é da noite do dia 28 de outubro de 2018. Ela foi feita logo após o anúncio oficial da eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da República com os votos de 55% dos eleitores brasileiros.

Não estavam entre eles os dois jovens eleitores de Fernando Haddad que foram apanhados pelo fotógrafo Daniel Ramalho num momento de melancolia e solidariedade mútua, porque cientes de que aquela noite duraria bem mais do que um tempo de rotação da Terra escondendo do Brasil a luz do sol.

Esta foi uma das fotos usadas pelo jornal britânico The Guardian para noticiar, naquela feita, o que tinha acabado de acontecer aqui nos suis do mundo.

Em um não menos melancólico lance do destino, foi o jornalista Dom Phillips (a quatro mãos com seu colega quase homônimo, Tom Phillips) quem, do Rio de Janeiro, reportou aos leitores do Guardian que “um populista de extrema-direita, pró-armas e pró-tortura foi eleito o próximo presidente do Brasil”.

No âmbito daquela cobertura, Dom Phillips também escreveu para o Guardian um artigo intitulado “Como será o governo Bolsonaro?”, no qual informava, por exemplo, que:

“Bolsonaro prometeu que não serão demarcadas mais reservas indígenas e que as reservas existentes serão abertas à mineração, despertando o alarme entre os líderes indígenas. ‘Estamos em estado de alerta’, disse Beto Marubo, líder indígena da reserva do Vale do Javari”.

Quatro anos depois, Dom Phillips e o indigenista brasileiro Bruno Pereira seriam assassinados no Vale do Javari, na Amazônia, por consequência direta das políticas de devastação total de Jair Bolsonaro.

Quando Dom e Bruno desapareceram, e enquanto o Exército aguardava “acionamento por parte do Escalão Superior” para iniciar as buscas, Beto Marubo vasculhava as margens do Javari atrás dos corpos.

A outra foto

Na imagem que ilustra este artigo, a foto de baixo é do dia 11 de setembro de 1973, nas cercanias do Palácio de La Moneda, em Santiago do Chile, logo após a morte de Salvador Allende durante o cerco final à democracia chilena comandado por Augusto Pinochet. “Pobre Augusto, deve estar preso”, comentou Allende com alguns assessores, acreditando até horas antes de morrer que seu algoz permanecia legalista.

Este outro registro de um abraço solidário sob o acossamento da morte aparece no documentário “Condor”, do cineasta brasileiro Roberto Mader. No doc, já no final, diz assim o jornalista estadunidense John Dinges, autor do livro “Os Anos do Condor: uma década de terrorismo internacional no Cone Sul”:

“Se um movimento militar, no futuro, começar a ficar tentado pela ditadura, pelo autoritarismo, de novo, poderão olhar para trás e ver o que houve com Videla, o que houve com Contreras, o que houve com Pinochet. Poderão ver o que aconteceu com essas pessoas. Elas estão em prisões, em muitos casos, em muitos países, e serão acossadas pela justiça até suas mortes, como foi com Pinochet. E isso é uma lição importante para um futuro megalomaníaco que possa querer fazer o mesmo”.

Dinges não cita, repare, nenhum gorila ou javali do “movimento” de 64 no Brasil, como diria Dias Toffoli sem nem precisar de um soldado ou um cabo em sua cola, ajudando a pôr a toga. No Brasil, crimes de lesa-pátria e lesa-humanidade costumam ser esquecidos a jato. O resultado disso, sentimos na pele.

Uma noite só

Escreve Eduardo Galeano em seu “O livro dos abraços”:

“Solto-me do abraço, saio às ruas. No céu, já clareando, desenha-se, finita, a lua. A lua tem duas noites de idade. Eu, uma”.

Os dois jovens abraçados da primeira foto da imagem que ilustra este artigo não tinham, não têm idades para terem vivido a ditatura civil-militar. Viveram, porém, sobreviveram, esperamos, ao governo de Jair Bolsonaro. Sobrevivemos, uns com mais, outros com menos sequelas no corpo e na alma.

Ao contrário de Bruno Pereira, de Dom Phillips; das vítimas do genocídio da covid; dos mortos nas chacinas recordes no Rio de Janeiro; do homem morto numa câmara de gás da Polícia Rodoviária Federal no Sergipe; dos baleados e esfaqueados da violência política; dos trucidados no campo; de Marielle Franco; de tantos que não conseguiram ver outra vez o dia clarear.

Para os jovens da foto, para milhões de brasileiros, que seja a última a única noite que foram obrigados a viver. Desculpem. Não foi possível evitar.

Neste fim de semana, quatro anos depois daquele abraço apertado de agonia, aqueles jovens, estejam onde estiverem, esperam que seu país lhes permita serem, com uma noite de idade, crianças na alegria de se abraçar.

Como diz o jingle.

E que brilhe a nossa estrela.

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