É tanta barbárie, desgraça e comoção – e confusão – envolvendo o espancamento até a morte do congolês Moïse Kabagambe num quiosque da Barra da Tijuca, que certos fatos direta ou indiretamente ligados ao cruento episódio vêm assim passando batidos, por mais que altamente indiciários das possíveis conexões por trás do assassinato.
Um deles é o relato dando conta de que o dono do quiosque Tropicália, que a polícia do Rio faz tanta questão de preservar, foi quem teria acionado os dois policiais militares que passaram os dias subsequentes ao crime tentando intimidar a família de Moïse, quando a família de Moïse correu atrás de explicações.
No dia seguinte ao assassinato, familiares de Moïse foram até o Tropicália tentar mobilizar o dono do quiosque para ir à polícia falar sobre o crime, já que a polícia parecia – e estava – quase que totalmente inerte.
O dono do Tropicália, segundo a família do morto, pareceu concordar e disse que ia ali buscar o carro, mas demorou-se, e neste meio tempo apareceram o cabo Leandro de Oliveira Vigaldi e o soldado Cleiton Lamonica Senra – “um cabo e um soldado”, mas estes da PM – pedindo documentos e fazendo sermão sobre como são bem-aventurados os que não fazem perguntas demais.
Outra informação das mais relevantes, crucial mesmo, é que dias antes de Moïse Kabagambe ser assassinado apareceram nas imediações do crime os corpos de outros dois homens mortos por “ação contundente”, ou seja, espancados.
Um deles foi encontrado boiando no mar na altura do número 2.630 da avenida Lucio Costa. Ele tinha as mãos amarradas, como Moïse teve as dele antes de morrer. O outro jazia na faixa de areia na altura do número 3.300 da antiga avenida Sernambetiba, transformada em avenida Lucio Costa em 1998 por decreto do então prefeito Luis Paulo Conde, após a morte do arquiteto responsável pelo plano urbanístico da Barra.
Mais um fato sinalizador é que a Lucio Costa, a avenida, reduto carioca de espancamentos neste início de 2022, é ou foi até recentemente endereço de vários grão-mafiosos, “milicianos” do Rio de Janeiro, ou figuras diretamente ligadas à milícia, algumas com prerrogativa de foro e quase todos com histórico de relações, digamos, B2B – business to business.
Come Ananás levantou as localizações dos imóveis em processos judiciais, denúncias do Ministério Público e imagens de prisões de milicianos divulgadas pela mídia. Todas as informações são públicas e estão disponíveis na internet. À exceção de um, no Recreio dos Bandeirantes, todos os imóveis ficam entre o posto 3 e o posto 5 da Barra da Tijuca. O condomínio Vivendas da Barra fica no meio, no posto 4. E todos são apartamentos, exceto os imóveis em questão que ficam no Vivendas, as casas 55 e 66.
Comecemos, então, pela casa 66 do número 3.100 da avenida Lucio Costa, que até há pouco era habitada elo apertador de gatilho do assassinato de Marielle Franco, o ex-PM Ronnie Lessa. Lessa é apontado como integrante do grupo de matadores de aluguel “Escritório do Crime”, que, como talvez dissessem os “Faria Limers”, é um player do ramo de fazer turnover de targets; uma subsidiary da parent company Milícia de Rio das Pedras, Muzema e Gardênia Azul.
O “Escritório do Crime” era chefiado pelo também ex-PM Adriano da Nóbrega. Adriano foi morto há dois anos na Bahia. Conhecido como “Capitão Adriano”, Nóbrega tinha laços com outro capitão – este, mais famoso, do Exército de Caxias – e com seus filhos, especialmente o mais velho, o 01.
Residencial-hotel
A 350 metros do Vivendas da Barra fica o prédio onde um dos chefes da milícia na Gardênia Azul, o ex-vereador carioca Cristiano Girão, comprou em 2002 um apartamento que valia R$ 500 mil, mas pagando apenas 12% deste valor, R$ 60 mil.
Girão foi preso em julho do ano passado. Antes, quando Ronnie Lessa foi preso pelo assassinato de Marielle, a polícia achou na casa 66 do Vivendas da Barra anotações com o nome de Girão, que anos antes teria acionado Lessa para matar o ex-policial conhecido como André Zoio, porque Zoio teria se arriscado como concorrente do ex-vereador no ramo de aluguéis na Gardênia. Zoio e sua namorada foram mortos em 2014, em Jacarepaguá. O carro onde estavam foi crivado com mais de 40 tiros – de fuzil.
Do mesmo prédio onde Girão “investiu” em 2002, saiu algemado em 2017 um homem chamado Cleber de Oliveira Silva, o “Clebinho”. Ele guardava um tesouro em joias no apartamento de quatro quartos com vista para o mar e tinha R$ 168 mil em espécie malocados no porta-malas de um Chevrolet Camaro. Cleber foi preso acusado de ser “agente financeiro” de uma outra milícia da Zona Oeste, esta atuante no bairro de Santa Cruz.
Outro miliciano da Zona Oeste, um dos chefes da milícia de Rio das Pedras, o ex-sargento da PM Dalmir Pereira Barbosa foi preso em 2011 em casa, ou melhor, num loft de um residencial-hotel da avenida Lucio Costa, a 500 metros do Vivendas da Barra.
Dalmir, ligado à máfia dos transportes, é acusado de matar, em 2003, o então chefe de gabinete da extinta Superintendência Municipal de Transportes Urbanos do Rio (SMTU), Paulo Roberto da Costa Paiva. É outro que construía prédios mambembes nos subúrbios proletários do Rio enquanto acordava todos os dias com vista para o Atlântico.
Uma spin-off do ‘Escritório do Crime’
O ex-major da PM Dilo Pereira Soares Júnior é mais um proprietário de imóvel na Lucio Costa, este no Recreio dos Bandeirantes. Dilo foi denunciado pelo Ministério Público junto com Dalmir Pereira Barbosa por formação de milícia em Rio das Pedras.
Na denúncia, dizia-se que “o grupo criminoso, inclusive, para a manutenção de suas atividades ilícitas, utilizava de seu domínio armado sobre a população, criando ‘currais eleitorais’ nas comunidades que controlavam, tentava introduzir seus membros na administração pública e nos cargos eletivos de vereadores e deputados”.
Preso em julho de 2019 em seu apartamento na antiga Sernambetiba, e que fica a pouco mais de 700 metros do Vivendas da Barra, o advogado Leonardo Igrejas Esteves Borges movimentou R$ 25 milhões ao longo de quatro anos em dinheiro engatado a empreendimentos miliciano-imobiliários na Muzema.
Quem também empreende neste ramo na Muzema é o “Escritório do Crime”, que usou dinheiro da rachadinha de Flavio Bolsonaro para financiar, vamos dizer assim, sua spin-off de construção civil. Foi, aliás, movimentando dinheiro de maneira heterodoxa que Flavio Bolsonaro comprou em 2014 um apartamento no número 3.600 da avenida Lucio Costa, pagando parte do acertado, R$ 30 mil, em espécie.
O apê de Flávio fica pertinho do condomínio de seu pai, como se o Vivendas da Barra não terminasse em muros, espalhando ramas pela Barra da Tijuca, pelo Brasil.
Quebra-chamas
E, portanto, voltamos ao Vivendas da Barra. Neste país, nos últimos anos, tudo volta ao Vivendas da Barra. Temos então, como grande expoente dos “Lucio Costers”, o homem da casa 58, o vizinho do apertador de gatilho da casa 66 do condomínio localizado ao número 3100 da avenida dos Espancamentos.
As últimas notícias em que o homem da casa 58 e o da 66 aparecem dividindo as mesmas linhas na imprensa dão conta de que um dos decretos armamentistas assinados por Jair Bolsonaro pode beneficiar Ronnie Lessa num processo que Lessa enfrenta por importação ilegal de um lote de um acessório para fuzil chamado quebra-chamas.
O quebra-chamas é inútil para praticantes de tiro ao prato e para colecionadores de fuzis de assalto, mas pode ser muito útil para assassinos profissionais, porque “camufla” o atirador ao reduzir em até 85% o clarão provocado pelo disparo.
O 16 quebra-chamas importados por Lessa em 2017 tinham como destino a República de Rio das Pedras, mas foram interceptados pela Receita Federal do Brasil. Em um decreto assinado no ano passado, Bolsonaro excluiu o quebra-chamas da lista de Produtos Controlados pelo Exército (PCE), “legalizando”, na prática, o comércio do apetrecho.
Assim atua “o cara da casa de vidro”, para quem comparsas de Adriano da Nóbrega telefonaram após a execução do miliciano pela polícia da Bahia. A “casa de vidro”, registre-se, não é o número 55 do Vivendas da Barra, mas sim o Palácio do Planalto – ou o da Alvorada. E há duas décadas o futuro “cara da casa de vidro” e o verbo “espancar” já dividiam as mesmas linhas de reportagens da imprensa carioca:

A ‘vara de correção’
Isso foi há duas décadas. Há uma, Jair Bolsonaro foi o deputado federal que mais se manifestou na tribuna da Câmara, com quatro discursos, sobre a chamada “Lei da Palmada”, que apesar dos latidos foi aprovada prevendo punição para castigos físicos e tratamentos degradantes contra crianças e adolescentes. Bolsonaro, qualquer um pode inferir, foi contra o então projeto de lei, e lançou mão de todos os artifícios regimentais para impedir a votação da matéria.
Em um dos discursos que fez na época na tribuna da Câmara dos Deputados, Bolsonaro esgrimiu o seguinte argumento para fundamentar sua posição: “existem passagens bíblicas que dizem, dentre outras coisas, que, quando um pai usa a vara de correção, está salvando o filho do inferno”.
Testemunhas disseram que os empunhadores de varas de pau que mataram Moïse Kabagambe anunciavam a quem passava que “queriam dar um corretivo” no congolês, acusando-o de comportar-se muito mal.
Está certo que no Rio a chapa é quente e o bagulho é doido. Mas quem é que mata alguém em plena Lucio Costa a golpes de varas de correção, com a desenvoltura de quem usa um fura-coco, e depois se vira sobre os calcanhares para voltar aos prosaicos afazeres – dois latões saindo, um refrigerante para o freguês – largando o corpo à vista de todos, amarrado, arrebentado, esfriando junto ao freezer de cervejas estalando a zero grau, a dez passos do quiosque operado por um policial militar?
Só mesmo quem se fia nalgum belo tipo de anteparo.