Quatro anos e meio após a ministra do STF Rosa Weber votar contra o Habeas Corpus preventivo de Lula ao mesmo tempo em que dizia entender que a prisão em segunda instância arrepia todos os cabelos da Constituição, a ministra do TSE Maria Cláudia Bucchianeri suspendeu 164 inserções de direito de resposta de Lula às mentiras da campanha do, digamos, nazincumbente, após Jair Bolsonaro entrar com embargo de declaração, mesmo entendendo, a ministra Bucchianeri, que o embargo não é compatível “com a celeridade inerente aos processos de direito de resposta”.
Em abril de 2018, a ameaça a Rosa Weber foi pública, escancarada, um berro vindo das arquibancadas, ou melhor, dos alto-falantes do estádio: o tuíte do general Eduardo Villas Boas perguntando “às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais”, e afirmando que o “Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade” e “se mantém atento às suas missões institucionais”.
Não se sabe se Maria Cláudia Bucchianeri sofreu algum coturno no pescoço, alguma ameaça objetiva além daquela óbvia, ou seja, a de uma nomeada por Bolsonaro para o TSE com apoio de grupos evangélicos ser percebida como traidora, se não como herege, pelas forças politico-pentecostais com chances reais de se renovarem no poder e, renovando-se, vindo com força e vontade para instalar no país algo muito parecido com um regime teocrático, se é que não se animam para mudar o nome oficial da República Federativa do Brasil.
E sabemos bem o que regimes teocráticos reservam aos traidores e hereges. É bom lembrar que a ministra Bucchianeri suspendeu uma decisão que ela própria havia tomado, delegando-a, agora, após o embargo de Bolsonaro, ao plenário do TSE, indo às favas com a “celeridade inerente aos processos de direito de resposta”.
Mesmo antes, porém, da impressionante demonstração de força do bolsonarismo no primeiro turno e da espada de Dâmocles que isto pôs sobre os pescoços sobretudo de quem exerce o poder eleitoral, o TSE já havia decidido jogar um jogo perigoso, muito parecido na lógica e no desenrolar com o cenário que se desdobrou do convite à “fiscalização” do sistema brasileiro de votação eletrônica feito por Luis Roberto Barroso ao bolsonarismo militar – o bolsogolpismo.
Um jogo perigoso na bola da disseminação de mentiras e nas outras duas bolas do jogo – abuso de poder econômico e abuso de poder político.
Em 2021, o deputado estadual do Paraná Fernando Francischini teve seu mandato cassado pelo TSE a título de punição exemplar contra o que se anunciava para 2022, ou seja, uma avalanche de desinformação ainda maior do que aquela que o TSE assistiu – e apenas assistiu – em 2018. Francischini foi cassado, e foi declarado inelegível por oito anos, porque, nas eleições 2018, no dia mesmo da votação, disse à sua audiência no YouTube que havia urnas eletrônicas adulteradas para registrar voto nulo se o eleitor digitasse o 17, então número eleitoral de Jair Bolsonaro.
Em agosto deste ano, o corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, disse o seguinte ao jornal O Globo:
“A decisão sobre o Francischini foi um cartaz, um aviso. Se fizer, vai ser cassado. Como de fato aconteceu, houve a cassação. O que se fez ali foi criar o precedente, o primeiro, e o candidato que se aventurar a fazer uma coisa parecida, tentar repetir a dose, vai ser cassado, eu não tenho a menor dúvida. Sem falar em outras sanções que podem ser aplicadas. Se acontecer, eu não tenho a menor dúvida de que a punição virá, e virá forte”.
Antes de assumir a presidência do TSE, o ministro Alexandre de Moraes assegurou o seguinte à população brasileira sobre a disseminação de mentiras como elemento de degeneração do processo eleitoral: “quem se utilizar de fake news, quem falar de fraude nas urnas, quem propagar discurso mentiroso, fraudulento e ódio, terá seu registro cassado, independentemente de candidato a qualquer dos cargos”.
Não aconteceu. Inúmeros candidatos bolsonaristas a todos os cargos, em todo o país, propagaram discurso mentiroso, fraudulento e de ódio no período eleitoral. No dia 25 de agosto, por exemplo, o então candidato a deputado federal pelo Mato Grosso do Sul Marcos Pollon publicou um vídeo no YouTube no qual afirmou que a decisão do TSE de proibir acesso às cabines de votação com celulares foi tomada “pra gente não filmar as atrocidades que provavelmente vão acontecer: você votar em um e aparecer o nome do outro”.
Marcos Pollon, que é presidente do Movimento Pró-Armas e próximo à família Bolsonaro, não só não teve seu registro cassado, mas foi o deputado federal eleito com mais votos no Mato Grosso do Sul.
Não há fumaça de cassação de registro de candidatura por fake news na eleição mais carcomida pela mentira talvez em toda a história mundial. Em vez disso, o TSE se enveredou pelo contrário disso, empenhando-se, como os piores árbitros de futebol, na aplicação da chamada “lei da compensação”: deu pênalti pra um, tem que dar pênalti pro outro também; cartão amarelo aqui, cartão amarelo lá, mesmo que não haja termo de comparação entre uma entrada criminosa no tornozelo e uma ordinária trombada de jogo.
Isto ficou evidente nas decisões absurdas da Justiça Eleitoral de proibir a exploração pela campanha democrática dos vídeos em que Bolsonaro se revela dado ao canibalismo e reincide em pulsões de pedofilia. E não importa a quantidade de aplicações da “lei da compensação”, mas sim a sua interferência no andamento do jogo: a decisão de Moraes sobre o vídeo das “menininhas arrumadinhas” saiu momentos antes do debate da Band e serviu como, tipo, um “candidato padre” para ajudar Bolsonaro no estúdio.
Não é por acaso que a campanha de Bolsonaro, como reportou Malu Gaspar, recebeu a decisão de Moraes sobre “pintou um clima” como uma tentativa de “neutralizar a narrativa que o ministro estava agindo contra os interesses do presidente”, comemorando que a decisão, ora veja, “equilibrou o jogo” no TSE…
Na última quarta-feira, 19, o mesmo Alexandre de Moraes reconheceu que a “desinformação neste segundo turno está um desastre”. Qual é a surpresa? Corintiano fanático, Xandão sabe bem que juiz que aplica “lei da compensação” acaba perdendo, como se diz, o controle da partida.