Tanto o juiz Guilherme Schilling Pollo Duarte, que em dezembro de 2013 condenou o catador de recicláveis Rafael Braga Vieira a cinco anos e quatro meses em regime fechado por porte de “artefato explosivo e inflamável”, quanto o juiz Ricardo Coronha Pinheiro, que em abril de 2017 condenou Rafael Braga novamente, desta vez a 11 anos e três meses de xadrez por porte de 0,6g de maconha e 9,3g de cocaína — não sem levar em conta a condenação anterior para fazer a “dosimetria da pena”, concluindo sobre uma “personalidade voltada para a criminalidade” — , tanto um quanto o outro, dizíamos, perderam a oportunidade de lustrar suas sentenças com um refrão que nos EUA é tão conhecido quanto o manejo do Sistema Penal para detergir a miséria: That’s the power of Pine-Sol, baby!
Há muitos e muitos anos este informe de batalha contra os germes, fungos, bactérias e toda sorte de sujeira ecoa pelas TVs das famílias estadunidenses, reverberado na voz de Diane Amos, uma atriz negra e outrora pobre de Indianápolis que virou celebridade da Costa Leste à Costa Oeste, reputada como a “Pine-Sol Lady”, quando engrenou como garota propaganda, décadas atrás, de um dos produtos de limpeza mais populares nos EUA e em 50 outros países, imprimindo à marca sua personalidade vibrante e sorriso aberto, no melhor estilo “garoto do Bombril”.
O Pine-Sol foi criado nos EUA no fim dos anos 1920, começo da Grande Depressão, por Harry A. Cole, um químico do Mississippi em quem deu na telha fazer um desinfetante a partir do óleo extraído de pinheiros que baloiçavam ao vento temperado nas cercanias da cidade de Jackson.
No início, Harry vendia seu invento para empresas que cuidavam de manter devidamente clean as agências bancárias daquela região. Passaram-se muitos anos, o negócio prosperou, e em 1990 a H.A. Cole Products Company vendeu a marca Pine-Sol para a Clorox Company, multinacional com sede na Califórnia que atualmente figura na lista das 500 maiores empresas do mundo elaborada pela revista Fortune. A Clorox aprimorou a fórmula do produto e hoje o Pine-Sol mata 99,9% dos germes, fungos e bactérias, de modo que “a dona de casa tem a residência perfumada e a família mais que protegida”.
No Brasil, a licença para comercialização do Pine-Sol pertence a outra empresa com sede nos EUA: a Colgate-Palmolive. E foi ele, o Pinho-Sol, o produto escolhido para representar essa companhia americana no projeto End-to-End (Sustentabilidade de Ponta a Ponta) lançado aqui em 2010 por outra transnacional estadunidense, o Walmart. Uma terceira corporação da matriz, a Pepsico, entrou com o Toddy Orgânico, e uma quarta, a Procter&Gamble, juntou-se com o Band-Aid.
Aquele não foi o primeiro passo “verde” dado pela Colgate-Palmolive no Brasil, que opera no país desde 1927 e que faz parte, por exemplo, e desde 2006, do programa “Dê a mão para o futuro”, da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC), projeto esse que promove a “inclusão social de catadores de recicláveis”.
Quando o Pinho-Sol entrou na cesta End-To-End do Walmart, com sua embalagem passando a ser quase 100% eco-friendly — com redução da gramatura da tampa e rótulo feito com papel procedente de florestas certificadas, além do próprio pet reaproveitado — , a Colgate-Palmolive percebeu que havia “oportunidades de melhoria na cadeia de coleta de material reciclável” no Brasil.
Por aqueles dias, circulava a informação realmente de encher os olhos de que o Brasil vinha se especializando em “transformar lixo em lucro”, com o mercado de recicláveis movimentando nada menos que R$ 12 bilhões ao ano. Na visão da empresa, essa cadeia, aparentemente sem trocadilho, ainda dependia demasiadamente dos 800 mil catadores do país que trabalhavam por conta própria ou organizados em cooperativas. A partir da percepção dessa “janela de oportunidade” – para usar uma expressão da moda -, dois anos depois a Colgate-Palmolive criou as Brigadas Colgate: “times” de coleta em escolas, ongs e — não menos importante — condomínios, para recolha de materiais recicláveis.
Nas “Brigadas Colgate”, qualquer pessoa ou grupo podia realizar sua própria coleta e, a cada item salvo do limbo da lata de lixo, R$ 0,02 eram doados para ongs ou escolas apontadas pela própria equipe catadora. Em junho de 2013, a Colgate-Palmolive anunciou a marca de 250 mil unidades de embalagens “pós-consumo” recolhidas por mérito da militância de seus 660 “times” espalhados pelo Brasil. Naquele mesmo mês, o catador Rafael Braga foi preso porque levava na mochila, no caminho para o barraco, uma garrafa “pré-consumo”, lacrada, de Pinho-Sol, num dia das “jornadas de junho”, as grandes manifestações populares contra a carestia e a corrupção que não foram por 20 centavos, quiçá por R$ 0,02, mas foram cavalgadas pelas forças dorsais do velho Estado brasileiro – injusto, racista e opressor.
Trinta anos mais cedo, em 1983, o criminalista Augusto Thompson, ex-diretor do Departamento do Sistema Penitenciário (Desipe) do Rio de Janeiro, observava que muitos nomes já haviam sido dados à “ação que se pretende apropriada para transformar o criminoso em não criminoso”: recuperação, ressocialização, cura, educação, reeducação, reabilitação, regeneração, etc.
Do “véu dessa rica prolixidade”, sob a qual se oculta “o verdadeiro desígnio a ser alcançado” pela pena, até hoje não faz parte a palavra “reciclagem”, ainda que ela já seja fartamente utilizada para explicar o que falta para um desempregado se transformar em empregado – “o profissional contemporâneo precisa se reciclar constantemente” -, e por mais que o setor de reciclagem de lixo não abra mão da mão de obra carcerária, sob a certeza de que, se ressocializar não é exatamente reciclar, reciclar, por seu turno, por certo é renascer.
Um exemplo vem do presídio de Alcaçuz, no Rio Grande Norte, que se destacava entre as penitenciárias federais pelo seu projeto pioneiro de ressocialização de apenados pela via do reaproveitamento de cartuchos de impressora. Isso antes de o presídio de Alcaçuz ficar famoso pelo massacre de 27 presos durante um motim em janeiro de 2017.
Pouco antes, em dezembro de 2016, a Secretaria estadual de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (Seap) promoveu em uma das alas femininas do Complexo Penitenciário de Gericinó, onde Rafael Braga estava preso, o concurso Cela Brilhante de Natal, incentivando as detentas a fazerem guirlandas, árvores, presépios, anjos e figuras do Papai Noel reaproveitando garrafas PET, embalagens de marmitex, copos plásticos e até papéis higiênicos.
Apesar do farto noticiário sobre seu castigo, não houve, na época, na imprensa de referência, quaisquer informações sobre o que Rafael Braga afinal compreendeu primeiro, reeducando-se em Gericinó, vendo a guirlanda nascer quadrada, reciclada, por entre as grades de sua cela: o verdadeiro significado do Natal ou o da expressão “inclusão social de catadores”?
Quando ainda era uma desconhecida mãe solteira que se desdobrava para dar conta de três empregos, um dia a futura Pine-Sol Lady, moída, adormeceu no carro assim que estacionou na frente do prédio onde morava. O filho bebê estava no banco de trás. Quando um policial bateu no vidro para acordá-la, não foi para acrescentar-lhe à dureza do cotidiano uma voz de prisão por vagabundagem, um processo por maus tratos a incapaz e finalmente e por qualquer motivo o xilindró, no país onde um em cada 21 negros reside atrás das grades, e que tem mais negros na prisão hoje do que escravizados no século XIX.
De modo excepcional, o policial apenas ajudou Diane Amos a subir as escadas com as compras. Já famosa, Diane contou no talk-show de Oprah Winfrey que aquela experiência, digamos, bem-sucedida com o aparato repressivo dos Estados Unidos da América, aquele susto, a fez tomar a decisão de nunca mais passar sufoco nessa vida. Quantos, pretos, pobres, também decidiram o mesmo, decidem todos os dias, na matriz e na semicolônia, mas em vão? Somente anos depois a sorte sorriu para Diane, quando ela encontrou a redenção em um teste de TV, segurando, sorridente, uma garrafa de Pine-Sol.
Quando a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro encontrou uma garrafa de Pinho-Sol na mochila de Rafael Braga, em 2013, em um dia de ruas buliçosas, encontrou portanto “artefato semelhante a coquetel molotov”, resultando que à dureza do seu cotidiano de catador de recicláveis acrescentou-se uma condenação criminal dada pelo juiz Guilherme Schilling. Em janeiro de 2016, quando andava pelas ruas da Vila da Penha com uma tornozeleira eletrônica à mostra — quando, negro e pobre, ostentava em plena favela a progressão de sua pena — Rafael Braga foi novamente abordado pela PM, e dessa nova dura resultou uma nova cana, essa por tráfico, decidida pelo juiz Ricardo Pinheiro com base no flagrante que cinco policiais da UPP da Vila Cruzeiro dizem ter dado no Pine-Sol Guy.
Esse é o poder do Pinho-Sol, baby: por causa da “reincidência”, em agosto de 2017, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou a Rafael Braga um pedido de habeas corpus para que o Pine-Sol Guy recorresse em liberdade da sentença do juiz… Pinheiro. Hoje, dez anos depois das jornadas de junho, Rafael vive, ou aguenta, em liberdade condicional, conseguida junto ao Superior Tribunal de Justiça para tratar uma tuberculose contraída no ambiente de germes, fungos e bactérias da prisão. A cada três meses precisa comparecer em juízo, faltando dois anos e meio de pena a cumprir.
É como diz outro slogan moderno da Clorox Company para a invenção do velho Harry: “Limpando o que aborrece desde 1929”.