Quatro ministros do Supremo Tribunal Federal – Gilmar Mendes, Lewandowski, Barroso e Alexandre de Moraes – participam nesta semana, nos próximos dias 3 e 4, de um evento empresarial em Lisboa chamado Lide Brazil Conference Lisbon. Um dos patrocinadores do evento é a fatiada e privatizada Companhia de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro, a Cedae.
Em 2021, a controversa privatização da Cedae só foi levada a cabo, só foi possível graças a uma decisão liminar do então presidente do Supremo, Luiz Fux, liberando a venda apenas três dias antes da data marcada para o leilão dos três primeiros lotes fatiados, e, após o leilão, graças a uma decisão do plenário do STF mantendo a validade da lei fluminense que permitiu a privatização.
Mas os excelentíssimos não veem problema em agora dissertarem sobre “institucionalidade e cooperação” não exatamente à beira do Guandu, mas do Tejo, sob patrocínio da Cedae/Governo do Rio. Enquanto isso, já padecem dos efeitos da privatização os moradores do Rio de Janeiro mais “acossados por mil necessidades”, para tomar emprestadas as palavras de Roberto Arlt em seu livro intitulado, a propósito, “Águas fortes cariocas”.
Mas é pior
Outro patrocinador do Lide Brazil Conference Lisbon é a Eletra Industrial Ltda, fabricante de ônibus elétricos que é subsidiária do Grupo ABC, da família Setti Braga. Outra subsidiária do Grupo ABC é a Metra – Sistema Metropolitano de Transportes Ltda.
Em 2021, o então governador de São Paulo, João Dória, assinou com a Metra, sem licitação, um contrato de concessão de 25 anos para construção e operação de corredores de ônibus elétricos rápidos no ABC Paulista, o chamado BRT-ABC. O caso foi parar no STF, na forma da ADI 7048.
O julgamento começou em outubro do ano passado. O placar estava em dois a zero (Cármen Lúcia, Fachin) pela suspensão do contrato quando um ministro pediu vista. Até hoje, quase quatro meses depois, o julgamento está parado.
Não é pouco o que está em jogo. O valor do contrato Dória-Metra é uma fortuna de R$ 22,6 bilhões, quase o mesmo valor da venda dos três primeiros lotes da Cedae (R$ 22,7 bilhões).
O ministro que pediu vista foi Gilmar Mendes, que nesta semana participa do Lide Brazil Conference Lisbon junto com Lewandowski, Barroso e Moraes, que também ainda não votaram no julgamento da ADI 7048. O Lide Brazil Conference Lisbon é organizado por João Dória, completando o triângulo da promiscuidade de ministros do STF em Lisboa.

O slogan da Eletra, que patrocina o evento, é: “se depender da gente, o céu continuará azul”.
E a mídia?
E a mídia, que não vê, ou melhor, não mostra? É que a mídia, nas pessoas jurídicas e física da Veja, IstoÉ, IstoÉ Dinheiro e Merval Pereira, virou “mídia partner” de conflitos de interesses:

Azimut, azimute
Ainda que gritante, a participação de ministros do STF em evento patrocinado pela Cedae e pela Eletra é apenas um exemplo do caráter insuportável, para uma República que se quer digna do nome, dos “promíscuos encontros da elite econômica com a magistocrática“, nas palavras com as quais Conrado Hübner Mendes deu um belo punch na participação de ministros do Supremo na Lide Brazil Conference New York, em novembro do ano passado.
Do evento de Nova York participaram, pela elite magistocrática, os mesmos Gilmar Mendes, Lewandowski, Barroso e Alexandre de Moraes, reforçados por Cármen Lúcia e Dias Tóffoli.
Participam nesta semana da Lide Brazil Conference Lisbon, além dos quatro cavaleiros do STF, um ministro do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, e o presidente do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas.

Pelo lado na elite econômica, irão ao convescote de Lisboa o presidente da Febraban, Isaac Sidney, o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, Abílio Diniz e um camarada chamado Giorgio Medda, CEO do Azimut Group, holding italiana de “gestão de fortunas” ora em franca expansão no Brasil.
No fim das contas, é disso mesmo que se trata a peregrinação, a odisseia de ministros do Supremo pelas Brazil Conferences da Lide: “gestão de fortunas”. É este mesmo o azimute (direção no horizonte). É este o idioma falado nos meetings desta estirpe. É esta a moeda corrente do evento que tem ainda entre seus patrocinadores o “cryptobank” Capitual, que também tem problemas com a justiça brasileira.

Outro idioma, o dos ‘duros de verdade’
Enquanto isso, bem… voltemos a Roberto Arlt e seu monólogo não para uma cripto, mas para uma moeda de cinco centavos nas “Águas fortes cariocas”:
“Você me contará a angústia dos pés-rapados por cujos bolsos você passou, peregrina, sem poder durar em nenhum. Você vai me narrar a odisseia de inumeráveis vadios acossados por mil necessidades, e eu te contarei, por minha vez, as broncas que não posso escrever; destilarei veneno e nós dois, coitados, nos consolaremos como fazem os duros de verdade, mas que falam o mesmo idioma”.
Essa matéria tem um erro grave no que se refere à Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro. A Cedae não foi privatizada ou concedida. No Rio houve a concessão regionalizada dos SERVIÇOS MUNICIPAIS de água e esgoto em 46 municípios. Foi uma concessão municipal, na qual a participação do Estado foi organizar o leilão por delegação e, durante o período de concessão, fazer a gestão dos contratos. A Cedae teve seus contratos de programa em 45 municípios encerrados antecipadamente com base no Marco Legal do Saneamento e está sendo indenizada em R$ 4,3 bilhões pelos ativos não amortizados., conforme previsto na lei.
É preciso mais respeito com a informação e com o leitor.