No início de 1988, 130 membros da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) que tinham sido deportados por Israel após a eclosão da Primeira Intifada decidiram zarpar do porto de Limassol, no Chipre, para retornarem ao território ocupado da Faixa de Gaza. O barco da jornada, um velho ferry japonês chamado Sol Phryne, foi comprado de vésperas pela OLP por US$ 600 mil e rebatizado como Al-Awda, o Navio do Retorno. Mais de 200 jornalistas e políticos de todo o mundo embarcariam junto com os palestinos naquele aberto desafio ao sionismo.
Embarcariam.
Horas antes da partida, uma explosão abriu um buraco no casco do navio atracado. “Navio do retorno palestino sofre atentado”, estampou o jornal O Globo no dia seguinte, no alto da página 9 do caderno Mundo.
‘Não fui eu’
Contou assim o jornal O Globo do dia 16 de fevereiro de 1988:
Um porta-voz da OLP disse dispor de provas de que o serviço secreto israelense, o Mossad, foi o responsável pelo ataque, cuja autoria foi, porém, reivindicada por dois outros grupos.
Em telefonema [anônimo] à agência de notícias grega ANA, a Frente de Salvação Palestina, facção rival da OLP, informou que o atentado foi um protesto contra a organização liderada por Yasser Arafat. Mas em outro telefonema, à filial da agência americana AP em Chipre, alguém que falou em nome da Liga de Defesa Judaica (LDJ) [ou seja, anônimo também], disse que o ataque foi “apenas uma advertência, pois se houver uma próxima tentativa (de realizar a viagem), a explosão será depois de todos estarem à bordo”.
A chancelaria de Israel negou-se a comentar as acusações da OLP, mas horas antes do atentado ao barco o ministro da Defesa, Yitzahk Shamir, assinalara:
– O Estado de Israel decidiu que está obrigado a não permitir que (os palestinos) alcancem seu objetivo (de regressar), e que o fará com todos os meios possíveis.
Lá se vão 35 anos e Israel sempre negou, nunca admitiu envolvimento com o atentado ao navio Al-Awda.

Anote os ingredientes
Estava tudo lá, 35 anos atrás: uma bomba contra um desafio ao sionismo; confusão semeada na imprensa sobre a autoria de um atentado de repercussão internacional – ainda que, aquele, sem mortos; e o de praxe “não fui eu” de Israel.
Dias antes do bombardeio do hospital Al-Ahli, levado a cabo nesta terça-feira, 17, Israel tinha ordenado a desocupação dos hospitais do norte da Faixa de Gaza, entre eles o Al-Ahli, na Cidade de Gaza. Médicos e enfermeiros de Gaza desafiaram o ultimato sionista, entre eles médicos e enfermeiros do Al-Ahly. Poucas horas após a explosão do Al-Ahly, Israel negou que tivesse feito o bombardeio – “Israel não ataca hospitais” – e culpou a Jihad Islâmica.
Acrescente uma coincidência
Chama-se Al-Awda, como o navio, um outro hospital do norte de Gaza. Foi à operação da ong Médicos Sem Fronteira no Al-Awda que Israel deu na última sexta-feira, 13, um ultimato todo especial: apenas duas horas para esvaziar, prazo depois prorrogado por mais seis horas, ou então…
… ou então o quê, exatamente?
Perguntamos à Jihad Islâmica?
Finalize com um detalhe
Em 2011, os jornalistas investigativos israelenses Dan Margalit e Ronen Bergman finalmente elucidaram, em um livro lançado naquele ano, o mistério do atentado ao “Navio do Retorno” em 1988. Margalit e Bergman descobriram que o atentado ao navio palestino foi obra do Mossad e do Shayetet 13, unidade de forças especiais da Marinha de Israel.
A informação já tinha sido adiantada por Ronen Bergman em artigo publicado em 2010 no Wall Street Journal:
“Horas antes da hora marcada para zarpar, o navio vazio foi explodido no porto de Limassol por uma equipe de agentes do Mossad e homens-rãs da Shayetet 13 (o equivalente israelense aos Navy Seals). A equipe era liderada por Yoav Gallant, então um jovem oficial e hoje um alto general do Exército de Israel. A operação foi um sucesso. Não houve vítimas de nenhum dos lados e a OLP desistiu da ideia de navegar para Gaza”.
Detalhe: o então jovem oficial Yoav Gallant, depois general, é hoje ministro da Defesa de Israel. Foi ele, Gallant, quem disse na sequencia dos ataques sangrentos do Hamas no final de semana retrasado, em Israel, que Israel estava em guerra contra “animais humanos” e que a Faixa de Gaza sofreria um “assédio total”, insinuando, declarando para quem quisesse ouvir que ninguém seria poupado.
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