Come Ananás reproduz, mais abaixo, uma fascinante entrevista dada por Isabel Salgado a Sylvia Moretzsohn e publicada no jornal O Globo em agosto de 1986. Isabel morreu nesta quarta-feira, 16, aos 62 anos de idade e apenas dois dias após ser integrada à equipe de transição do governo eleito de Luis Inácio Lula da Silva.
Nesta quarta, após saber da má notícia, Sylvia, em homenagem a Isabel, postou uma imagem daquela entrevista, extraída dos arquivos d’O Globo:
Isabel: acima de tudo, jogar por paixão e prazer
Sylvia Moretzsohn
Isabel é uma das raras remanescentes da equipe que disputou o último Mundial Feminino de Vôlei, há quatro anos. Naquela época, o estigma de jogadora rebelde era bem mais forte. Mas até hoje ela carrega a imagem oposta do atleta ideal, aquele que enfatiza o sacrifício, o esforço, a dedicação ao trabalho. A Comissão Técnica da seleção feminina de vôlei se orienta por esta concepção, muito comum no esporte: a de que as jogadoras precisam ter a memória do sofrimento para conquistarem o objetivo a que se propõem.
Isabel entende que este conceito reflete, no esporte, a ética de uma sociedade em que o trabalho é incompatível com o prazer. E, nesse sentido, considera-se realmente o avesso do modelo: quer jogar feliz. Mas a imagem da jogadora rebelde leva naturalmente a outra: a de atleta irresponsável, resistente ao treinamento – ao trabalho -, que consegue manter a forma com facilidade por ser dessas raras pessoas privilegiadas pela natureza. Isabel admite o privilégio, mas lembra que nada acontece por acaso:
“No que eu sou tem muito trabalho, sim. Ou alguém acha que fiquei grávida, voltei logo e estou em forma por acaso? Sempre me cuidei. É mais ou menos óbvio que um atleta não pode dormir sistematicamente de madrugada e treinar cedo no dia seguinte. O esporte tem essas coisas evidentes. Você tem de comer legal, dormir legal, e isso eu faço. Do contrário, não conseguiria resultado nenhum”.
Isabel sabe que é preciso “abdicar de uma série de coisas” para treinar no ritmo exigido pela seleção, mas não abre mão de outra “série de coisas” que gosta de fazer. Tanto que, se a concentração para o Campeonato Mundial tivesse sido fora do Rio, não estaria na equipe.
“Estou há 10 anos na seleção e passei por muitas experiências. Queria descobrir qual era a minha. Agora já sei. Não critico quem age diferente, porque eu mesma já abandonei tudo pelo vôlei. Em 84 mesmo, para as Olimpíadas, fiquei meses naquela concentração do CTA, em São José dos Campos. Agora, não. Eu adoro jogar, mas também adoro meus filhos, meu marido, meus amigos, minha cidade. Como a seleção treinou no Rio, eu tive a possibilidade de viver essas relações, que estão todas fora do esporte. Se a concentração tivesse sido em outro lugar, eu não iria porque não poderia treinar feliz, e então ia render nada”.
Isabel se sente à vontade para falar que joga por prazer: em todo o grupo, é a única que está sem contrato – e, pelas contas que fez, “dá para viver até o fim do ano”. Recebeu, como todas as colegas da equipe, uma ajuda de custo da Confederação, mas gastou o dinheiro nas duas viagens diárias de sua casa, no Jardim Botânico, até o Floresta Country Clube, em Jacarepaguá.
“A seleção significou até uma despesa para mim. Portanto, se estou nela é porque quero. É claro que discordo de várias coisas, mas sou capaz de conviver nesse esquema e acredito no trabalho que está sendo feito”.
Ela não define as “várias coisas” de que discorda. Prefere uma crítica mais ampla à regra existente no esporte em geral: o culto ao “bom-moço”.
“O que eu quero está bem claro: jogar. Só. Não acho que para isso precise vender uma imagem de boa-moça, ou de muito doida, ou de marginal. E temo que esse modelo leve à perda de vários talentos, que simplesmente se afastem do esporte por não se adaptarem à estrutura. Porque, na verdade, o esporte obedece a uma estrutura que não se pretende diferente, e eu já não tenho esperança de mudanças nesse aspecto”.
Isabel diz que não preocupa nem um pouco em ter uma “boa imagem”, mas também não pretende ser um exemplo de nada. As consequências que o status de “musa” trazem não deixam de incomodar.
“Ninguém é ‘musa’ porque quer. Esse destaque que uma ou outra jogadora passou a ter, de uns anos pra cá, foi muito importante para a popularização do vôlei. E nada disso tira a importância do coletivo”.
Mas como é que alguém que admite não gostar muito da ideia de “ordem” e se declara incompetente para realizar qualquer coisa sem emoção consegue conviver com um sistema que, antes de tudo, privilegia a disciplina e tende a controlar a paixão para extrair do atleta o máximo de eficiência? A resposta começa com um gesto amplo e vago. Depois, um longo suspiro. Finalmente, as palavras:
“Você acha o quê? Eu me questiono o tempo todo, volta e meia me pergunto, o que eu estou fazendo aqui? Porque é meio louca essa coisa de ficar batendo numa bola um milhão de vezes, e querer bater mais forte porque uma cubana ou uma chinesa batem mais ainda. Mas essencialmente eu gosto de estar na quadra, o vôlei tem uma plasticidade que é linda. E, por mais que ponham tecnologia, por mais que a técnica seja necessária, eu vou sempre jogar com paixão”.
Mas há mais uma coisa que a move. Durante os Jogos Olímpicos de Los Angeles, Isabel deu uma declaração que define seu objetivo: queria ter uma espécie de documento para mostrar. Não o fetiche da medalha – pois, embora possa parecer estranho, as medalhas que ganhou estão espalhadas pelas casas dos parentes, e ela também não costuma guardar recortes de jornal. Não é muito simples explicar:
“Eu quero me propor a uma coisa e conseguir. Por exemplo, nesse Mundial, todo mundo está esperando um bom resultado, o que será ótimo, mas eu acredito até numa medalha. Então, eu vou dar cambalhota se a gente chegar às semifinais, mas subir num pódio é… entende? Ao mesmo tempo eu sei que vou dizer depois: e daí? Daí não sei, eu atingi aquele objetivo, e a vida continua”.
São esses momentos mágicos que valem a pena. Há alguns anos, Isabel dizia gostar “daquele espaço da quadra, do público, daquela coisa de palco”. Hoje, aos 26 anos, com três filhos e vários outros interesses e necessidades, continua a dizer que ainda gosta muito de jogar. A explicação é difícil porque, além da fama – e do dinheiro que ela pode render -, existe a magia do esporte. E a magia, quem pode explicar?