Esqueça a viagem de um ministro do Centrão em avião da FAB para participar de um leilão de cavalos. Esqueça as relações da ex-ministra do Turismo com milicianos da Baixada Fluminense.
A denúncia mais grave já feita pela imprensa contra alguém do primeiro escalão do terceiro governo Lula, – e será difícil superá-la -, é a de que o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, além de acobertar golpistas de agora, vem tentando sabotar a localização de corpos de vítimas de golpistas de antanho, os da ditadura civil-militar.
É o que diz a reportagem “Lula tem sido aconselhado a deixar recriação de Comissão de Mortos e Desaparecidos para depois”, de Monica Gugliano, publicada nesta terça-feira, 3, no Estadão.
A reportagem é para estômagos fortes. Ela diz, por exemplo, que Múcio “tem se empenhado para adiar” – a palavra correta, porém, é “impedir” – a recriação da comissão, promessa de campanha até hoje não cumprida por Lula, mas que estaria para acontecer no próximo 25 de outubro, 48º aniversário do assassinato de Vladimir Herzog pela ditadura.
Criada no governo Fernando Henrique e esbagaçada ao longo do governo Bolsonaro, a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos acabou extinta, por Bolsonaro, no fim do ano passado, entre a afanada de um Rolex e alguma reunião secreta com os comandantes militares para avaliar cenários e riscos para um novo golpe de Estado. Bolsonaro, este sim, cumpriu sua promessa.
Esta:

Por falar em cachorro, foi mais ou menos uma década após o fim da ditadura que estreou nas manhãs da programação da Rede Globo o célebre programa infantil TV Colosso, uma emissora de TV onde todos eram cães falantes, do diretor com pedigree ao vira-lata da manutenção. Um dos personagens era o puxa-saco Capachildo Capachão, sórdido ajudante do mandachuva da casa.
Por falar em sórdido, Múcio, segundo a reportagem do Estadão, avalia que “seria mais produtivo pensar em medidas que possam pacificar e não piorar um cenário que já é complexo” – a relação das Forças Armadas com o governo Lula.
Quem sabe algo como o que fez a USP em 1975, quando, “para pacificar um cenário que já era complexo”, a universidade demitiu a jovem professora de química Ana Rosa Kucinski por “abandono de função”, mais de um ano depois de Ana Rosa desaparecer – e todos sabiam – nas mãos da ditadura.
A reportagem do Estadão diz ainda que, “entre os que ponderam que o governo espere mais um tempo para instalar a Comissão Especial, o argumento é de que essa seria uma agenda muito complexa e de poucos dividendos políticos”.
Seria interessante ver se esses que “ponderam” teriam estômago para ponderar nestes termos, ouse seja, brincar de esconde-esconde com restos mortais, diante de quem há décadas tenta arrancar dos quartéis informações sobre o paradeiro dos seus entes queridos assassinados pelos entes idolatrados, festejados, protegidos por militares bem vivos da ativa. Seria interessante ver membros do governo Lula fazendo seus cálculos de “dividendos políticos” diante dos familiares dos pelo menos 210 brasileiros desaparecidos nas mãos da ditadura e nunca mais encontrados.
O que diriam? O que pediriam aos pais, filhos, irmãos, tios, sobrinhos, amigos de vítimas de crimes contra a humanidade? Um pouco mais de paciência, enquanto todo mundo espera a cura do mal, da tutela militar?
É para estômagos fortes, mas não há motivo para duvidar da reportagem de Monica Gugliano no Estadão. Nesta quarta-feira, 4, o governo de “união e reconstrução nacional” completa 277 dias de transigência, para usar uma palavra camarada, com “um mal de Alzheimer nacional”, como escreveu o irmão de Ana Rosa, Bernardo Kucinski, em seu romance K., no qual “tudo é invenção, mas quase tudo aconteceu”.
Acontece que faz mais de três meses que familiares de mortos e desaparecidos na ditadura publicaram um manifesto por meio do qual vieram “rogar” – foi esta a palavra usada – ao governo Lula a reativação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Já existe a lei. É só assinar um decreto que, segundo consta, está na mesa de Lula desde março, empoeirando. No dia 26 de junho, Dia Internacional de Combate à Tortura, eles alertaram:
“Acreditamos que tentativas de destruir a democracia seguem acontecendo quando NÃO se cumprem os deveres de um estado democrático de sustentar ações para garantir o esclarecimento da Verdade, o resgate e a construção da Memória, e a aplicação da Justiça contra a impunidade dos crimes cometidos”.
Além de ter que rogar, até agora em vão, a um governo democrático, eles ainda têm que ler no Estadão que os militares “rejeitam terminantemente uma nova discussão sobre mortos e desaparecidos na ditadura” e que, para esses repulsivos, “a sociedade brasileira deveria olhar para a frente e ‘esquecer’ essa pauta”.
Segundo os não menos repulsivos Capachildos Capachões da esplanada, são a esses ocultadores e destruidores de cadáveres que, hoje, “devemos a manutenção da nossa democracia”.
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