Há poucos dias, o jornalista Glenn Greenwald publicou um artigo na Folha de S.Paulo com o qual este herói da esquerda brasileira por causa da Vaza Jato entrou na longa fila de pontificadores dedicados a tentar nos convencer de que “os termos ‘esquerda’ e ‘direita’ perderam sentido”. Greenwald completa: “nos EUA”, por causa do estudo de caso, por assim dizer, que ele apresenta.
Greenwald teve essa iluminação juntando os alhos de que o extremista e teórico da conspiração estadunidense Tucker Carlson é crítico ferrenho do envolvimento dos EUA na guerra da Ucrânia com os bugalhos de que isso “o coloca ao lado de Noam Chomsky, Lopez Obrador e Lula”.
“Se Carlson, portanto, está em concordância com boa parte da esquerda global, como pode ser caracterizado como ‘extrema direita’?”, indaga Greenwald, passando ao largo dos fatos de que a posição de Tucker Carlson sobre a Ucrânia apenas ecoa o isolacionismo tacanho de Donald Trump e de que Carlson é um supremacista branco, entre outras de suas saltantes veias extremistas.
E assim, sem aportar no principal, conclui o ex-Intercept: “chamar alguém de ‘extrema direita’ já não revela quase nada sobre suas convicções”.
Não estão mais aqui para dizer se concordam, por exemplo, os 10 mortos do massacre em um supermercado em Buffalo, estado de Nova York, em maio do ano passado, perpetrado por um supremacista. Os mortos eram todos pretos. O assassino queria “tirar o maior número de vidas negras que pudesse”. Mas talvez isso não revele nada sobre as convicções do atirador.
O máximo de extremo que Glenn Greenwald diz enxergar em Tucker Carlson é o… ceticismo.
“O que mais marca o trabalho de Carlson nos últimos seis anos é o ceticismo extremo, e às vezes desdém, com que ele trata as principais instituições de poder dos EUA”, escreveu Greenwald na Folha.
Carlson é farsante? Não. É cético.
Golpista? Não. Blasé.
Bem, vejamos uma amostra do que mais marcou nos últimos anos o trabalho de Tucker Carlson, em quem Glenn Greenwald enxerga, na verdade, “a voz mais dissidente da TV a cabo” americana. Vejamos, estrelando também o próprio Glenn.

Quando deixou o Intercept, em 2020, durante a reta final da campanha eleitoral nos EUA, dizendo-se censurado em sua cruzada para denunciar uma conspiração pró-Biden, contra Trump, na mídia americana, Greenwald foi chorar pitangas no antigo programa de Tucker Carlson na Fox News, o Tucker Carlson Tonight, que era campeão de audiência.
Era. Até a Fox News – até a Fox News! – demitir Tucker Carlson, em abril, na esteira de um acordo judicial para a emissora pagar US$ 787 milhões à Dominion Voting Systems, empresa que foi acusada pela Fox News, com ajuda de Carlson, de fraudar as eleições de 2020 nos EUA em favor de Joe Biden.
Carlson e outras figuras destacadas da Fox News davam azo às acusações de fraude eleitoral mesmo sabendo-as e dizendo-as, mas só em off, sem pé nem cabeça. A campanha movida pela Fox News contra a Dominion Voting Systems – movida desta maneira, com informações sabidamente falsas – foi ingrediente importante do caldo que entornou nos EUA no dia 6 de janeiro de 2021, com a invasão do Capitólio.
Dez dias antes da demissão de Tucker Carlson da Fox News, lá estava Glenn Greenwald no Tucker Carlson Tonight, trocando figurinhas com o mentiroso sobre “o que os jornalistas deveriam fazer” na cobertura da guerra da Ucrânia. A audiência do Tucker Carlson Tonight era de fato bombástica: 3,3 milhões de espectadores, em média, a maioria deles ditos “conservadores”.
Não é um número segmentado de se jogar fora para alguém – estamos falando de Greenwald – que largou as organizações de mídia para cobrar US$ 5 por mês em seu próprio canal no Rumble, ferramenta tida como “ponto de encontro da extrema-direita”, descrita como “plataforma que une Greenwald e Monark” – Monark, o “podcaster” que acha que faz falta um partido nazista no Brasil.
E, em janeiro, Glenn Greenwald recebeu Monark em seu canal no Rumble, para Monark reclamar da “ditadura da toga” e agradecer a Greenwald por “always helping me in this process”.
Em novo artigo na Folha, publicado nesta sábado, 16, Glenn Greenwald atacou Alexandre de Moraes por Moraes ter derrubado as redes sociais de Monark, inclusive a conta de Monark na plataforma que o une a Greenwald.
No artigo, Glenn Greenwald classifica como “censuras” as determinações de Moraes para derrubar contas usadas por mitômanos que também são campeões de audiência para envenenar o Brasil com as mais estapafúrdias – e criminosas – imposturas, e, mesmo com o 8/1 ainda fresco, Greenwald diz que a atuação de Moraes é que configura “o auge dos valores antidemocráticos”.
E compara Moraes com Moro; e iguala, por contraste com seus críticos, quem apoia as decisões de Moraes contra golpistas a quem apoiou Moro na Lava Jato contra Lula:
“Quem questiona a autoridade legal de Moraes é acusado de ‘defender os terroristas’ —assim como os que questionaram Moro foram acusados de ‘defender os corruptos’. Moraes se transformou no tipo de herói que Moro era”.
E Greenwald, em que tipo de herói se transformou?
Para início de conversa, até parece que Glenn Greenwald não sabe distinguir entre uma conspiração judicial contra a Constituição e a Democracia, de um lado, e, do outro, o Judiciário cumprindo minimamente, ainda que tardiamente, seu papel de resguardá-las, a Democracia e a Constituição, ou o que sobrou delas após o longo período de depredação iniciado justamente com aquele conluio que o próprio Greenwald ajudou a escancarar.
Do discurso de Glenn Greenwald sobressai que seria necessário combater as fake news e os discursos de ódio nas plataformas e redes sociais não com repressão e remoção, mas com liberdade de expressão ilimitada e argumentação, como se um dos lados não vivesse postando imagens de tacos de basebol pintados com a palavra “diálogo”, camisetas estampadas como a frase “eu, pacificamente, vou te matar” e outras bugigangas “opressoras”.
Como se as redes e plataformas tal e qual configuradas por poderes econômicos nada inocentes tivessem arquitetura, por assim dizer, propícia a um embate no mínimo em pé de igualdade com a extrema direta, com o perdão do “rótulo”, com sua ética, com sua estética.
De Glenn Greenwald se diz que, apesar de morar há tanto tempo no Brasil, ainda não entende o Brasil.
Mas será que Glenn Greenwald ainda não entendeu também quem se dá bem com tudo o que os algoritmos adoram e a galera delira, tudo isso de “urgente!”, “absurdo!” “a casa caiu!”, “a Globo não quer que você veja esse vídeo”, “assista antes que seja derrubado”, neonazistas vitimizados com fitas adesivas sobre a boca e as últimas “notícias”, sempre bombásticas, sobre manipulações e becos nunca antes iluminados do “sistema”?
O canal de Glenn Greenwald no Rumble, que se chama “System Update”, tem vídeos com títulos como “as mentiras duradouras da mídia sobre o 6 de janeiro” e estas, abaixo, são as imagens destacadas de vídeos do “System Update” sobre Tucker Carlson e o rapper simpatizante do nazismo Kanye West.


Desde que Tucker Carlson foi demitido da Fox News, Greenwald já publicou em seu canal no Rumble pelo menos meia dúzia de up to dates sobre o que diz ser uma “campanha de censura”, de “assassinato de reputação” do sistema contra Tucker Carlson.
Talvez Glenn Greenwald tenha entendido tudo muito bem.