Matéria anti-Fome Zero e propaganda do governo sobre o Fome Zero publicadas na Folha em março de 2003.

Quem viu, ainda ontem, o oligopólio da mídia corporativa que opera no Brasil publicar e transmitir indignação com a volta do Brasil ao mapa da fome, e escândalo sempre que Jair Bolsonaro minimizava a fome no Brasil, há de se lembrar, ou nem por isso, que há exatos 20 anos, nos primeiros meses do governo Lula 1, a mídia empresarial desencadeou uma verdadeira guerra contra o programa Fome Zero, concomitantemente ao início da guerra movida por Bush 2 contra o Iraque.

Assessor especial de Comunicação da Presidência da República nos primeiros anos do primeiro governo Lula, o jornalista, escritor e professor Bernardo Kucinski municiava Lula com uma espécie de jornal particular, com textos “escritos diariamente, impressos, guardados em envelopes e entregues ao presidente na primeira hora do dia”, contendo análises sobre o que davam a TV e os jornais sobre aquele outro, já longínquo, início de um governo do PT, o primeiríssimo – e “circulando”, as “cartas a Lula” de Kucinski, até 2006.

Mais recentemente, as cartas de Bernardo Kucinski a Lula saíram reunidas em livro, vindo a público pela primeira vez. Logo no primeiro capítulo estão as cartas sobre o Bolsa Família e o Fome Zero. Ali, Kucinski participa o presidente sobre, por exemplo, como o “potencial emancipador do Fome Zero mexe com a mídia”, que bombardeava o programa com – palavras de Kucinski – “fogo ininterrupto”.

Vale muito a pena revisitar uma dessas cartas em especial, que chegou às mãos de Lula na primeira hora do dia de um dia de março de 2003, para dar a medida de até que ponto a perspectiva de verdadeiro avanço da Democracia mexe com o oligopólio da mídia; de até que ponto o oligopólio da mídia pode chegar em sua incurável alergia a coisa diferente, oposta, a políticas antipovo.

Segue abaixo.

O grosso da mídia continua se opondo ao programa

Matérias contra o Fome Zero continuam predominando. As últimas foram:

“Marketing do Fome Zero”, em Dinheiro deste fim de semana.

“O que há de errado no Fome Zero”, de Maria Hermínia no Estadão do domingo.

“Morrer de fome é raro no país”, na Folha da terça-feira.

Essas matérias deixaram claro outro ponto de conflito: o programa fala uma linguagem dissonante do “continuísmo”. Ao contrário do que acontece na macroeconomia, ele rechaça a ideia de “fazer mais do mesmo”; não quer ser a extensão dos projetos sociais tucanos. Isso incomoda amplas faixas da comunicação acadêmica e ONGs aninhadas em ações sociais da gestão anterior. Parte deste núcleo fornece “munição intelectual e estatística” para a artilharia pesada para colunistas, editorialistas e páginas de opinião. Há aí uma simbiose do conservadorismo com a academia.

A Folha da terça é, neste sentido, exemplar: declara ser irrelevante o combate à fome. Dá uma página de entrevista com epidemiologista gaúcho para dizer que é raro morrer-se de fome no Brasil. A linha fina da manchete desqualifica o Fome Zero ao afirmar que investimento em saúde traria mais resultados que projetos contra desnutrição. Um sofisma. O texto sugere a irrelevância do combate à fome até mesmo para reduzir a mortalidade infantil – “caso inexistisse a desnutrição, ela (a mortalidade infantil) cairia em no máximo 14,5%…”.

Afirma ainda que quase não existe desnutrição entre adultos no Brasil (ao lado, porém, retranca enviada pela correspondente do jornal no Piauí relata pesquisas que identificaram déficit proteico em Acauã e Guaribas).

Um box busca “sustentação científica” para desmerecer a prioridade social do governo Lula: a desnutrição nunca é a causa direta da morte, afirma o repórter, mas sim as infecções oportunistas que proliferam num organismo debilitado. Levado ao extremo, o mesmo raciocínio se aplica à Aids, que em geral não é a causa da morte, mas sim as infecções pulmonares que proliferam no aidético. Seria melhor investir em doenças pulmonares do que em prevenção à Aids?

O universo do Fome Zero (44 milhões de pobres) é novamente contestado. A entrevista da Folha “desmente” a existência de 44 milhões de famintos no Brasil, o que nunca foi afirmado pelo governo. O mesmo faz Maria Hermínia no Estadão. Esse contigente reflete o total de brasileiros que vive em insegurança aliementar, por conta de renda insuficiente (US$ 1,08/dia). São brasileiros que não têm acesso regular a uma aliementação equilibrada, tanto do ponto de vista da qualidade, quanto da quantidade.

O fundamento do programa “Uma política de segurança alimentar” ainda não foi incorporado ao raciocínio jornalístico, deixando espaço para as críticas de que o Fome Zero “exagera”. Ao escancarar um contigente da ordem de 50 milhões de pobres no país, sujeitos à fome crônica ou episódica (insegurança alimentar), o Fome Zero expõe o fracasso do modelo neoliberal e do seu antídoto compensatório, o Comunidade Solidária. Daí a série de artigos acadêmicos de cunho “científico” em que se procura demonstrar que o Brasil não tem uma escala de fome africana. O conceito de Segurança Alimentar – base do Fome Zero – é habilmente deslocado do debate.

Abaixo, o fac-símile da peça exemplar da Folha referida por Bernardo Kucinski, publicada no dia 7 de março de 2003:

“Morrer de fome é raro no país”, publicou a Folha contra o Fome Zero, sorrateiramente, no início do combate à fome no governo Lula 1, ainda que o próprio entrevistado tivesse elogiado o programa efusivamente. No início do desgoverno Bolsonaro, em 2019, após Bolsonaro dizer que era “uma grande mentira” haver fome no país, a Folha rebateu informando que em média 15 pessoas haviam morrido de desnutrição no Brasil em 2017 – últimos dados então disponíveis.

“A desnutrição é a expressão corporal da fome. A morte por desnutrição é um extremo, mas a gente tem estágios de desnutrição e estágios de insegurança alimentar nutricional. A gente não quer só que as pessoas não morram de fome, quer que as pessoas não vivam com fome”, disse à reportagem, na época, a professora Patricia Jaime, da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Tardiamente, em algum momento, o fundamento do Fome Zero, “uma política de segurança alimentar”, foi finalmente incorporado ao raciocínio jornalístico…

Sobre a suposta irrelevância do combate à fome para reduzir a mortalidade infantil, o tempo passa, o tempo voa, e em outubro de 2009 a própria Folha noticiou um estudo da ActionAid mostrando que “o programa Fome Zero, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reduziu a desnutrição infantil em 73% e a mortalidade infantil em 45% no Brasil”.

No seguinte, 2010, Lula foi condecorado pela ONU com título de “Campeão Mundial na Luta Contra a Fome”. Em 2011, já ex-presidente, o agora de novo presidente do Brasil ganhou o World Food Prize, o “Nobel da Alimentação”.

A World Food Prize Foundation explicou que “Lula foi escolhido por antecipar as Metas do Milênio da Organização das Nações Unidas ao garantir que 93 por cento das crianças e 82 por cento dos adultos façam três refeições por dia”.

Apoie o Come Ananás com Google ou Pix

Fortaleça a imprensa democrática brasileira.

FAÇA UMA ASSINATURA de apoio ao jornalismo do Come Ananás. Mensal ou anual, via Google. Cancele quando quiser. Você também pode fazer uma contribuição única.

OU FAÇA UM PIX de apoio ao Come Ananás, de qualquer valor. Toda contribuição é importante. Esta é a chave Pix do Come Ananás:

pix@comeananas.news

* Assinantes antigos podem gerenciar suas assinaturas de apoio na área do assinante ou no portal do cliente da Stripe.

Participe da conversa

1 Comentário

Deixe um comentário

Deixe um comentário