Estava marcado para o dia 8 de junho de 2018, uma sexta-feira, um show livre de Elza Soares nos Arcos da Lapa. Elza tinha acabado de lançar seu 33º álbum, “Deus é Mulher”. A Polícia Militar do Rio de Janeiro impediu a realização do show, de última hora e alegando um motivo burocrático qualquer. Não muito tempo antes a justiça de São Paulo havia cancelado, também em cima da hora, um show de Caetano Veloso em uma ocupação do MTST, porque a ocupação estava “sub judice”.
“Mil nações moldaram minha cara/Minha voz, uso pra dizer o que se cala/Meu país é o meu lugar de fala”. Foi com esses versos que Elza abriu aquele “Deus é Mulher”.
Caso alguém botasse o álbum pra tocar na Marcha Para Jesus que aconteceu em São Paulo, com Jair Bolsonaro no carro de som, dias antes de o show de Elza Soares no Rio ser cancelado, certamente teria sido quebrado ali o recorde mundial de flash mob: um milhão em meio de pessoas fazendo ao mesmo tempo o sinal da cruz ante aquele exemplo de blasfêmia e ideologia de gênero tudo junto e misturado no balaio vermelho dos “esquerdopatas” que o capitão prometia – promessa eleitoral – varrer do Brasil.
E que dano cerebral lhes causaria a música “Exú nas escolas”, do mesmo álbum. E como os versos “Eu quero dar pra você, mas eu não quero dizer/ Você precisa saber ler”, também de “Deus é Mulher”, os faria pensar no destino dos seus amores contrariados por sua própria hipocrisia, puritanismo, falso moralismo; como deixaria o gosto das amêndoas amargas, como diria Gabriel García Márquez, nas bocas desses e dessas que embarcaram gravemente não naquela Marcha Para Jesus em São Paulo, mas na Grande Marcha Para Trás em que meteram o Brasil, em cujas bandeiras vai implícito e impostor o letreiro das medalhas nazistas: “Got mit uns” (Deus está conosco).
Quando foi censurado aquele show de “Deus é mulher”, “Exu nas escolas” e “eu quero dar pra você”, e poucos meses antes das eleições de 2018, Elza Soares postou assim nas redes sociais: “Pelo amor de Deus, outra vez, não”.
Elza e Agnès
Outra nonagenária que morreu não faz muito tempo foi a cineasta belga Agnès Varda. Quando recebeu um Oscar honorário, Varda disse que aquele era um negócio muito sério, com muito peso e tudo mais, mas que entre o peso e a leveza, ela ficava com a leveza, e começou a dançar no palco, “a dança do cinema”. Aquilo foi tão Elza Soares.
Peso e leveza. As senhoras Elza e Varda ensinam: o mundo cá fora é como as coisas que a gente equilibra dentro da gente: há melancolia, mas energia também. Tem que haver.