A presença do hacker Walter Delgatti Netto no Ministério da Defesa às vésperas das eleições de 2022 – presença confirmada pelo atual titular da pasta, José Múcio Monteiro – desencadeou, ou melhor, reforçou uma série de movimentações em Brasília para blindar as Forças Armadas das acusações de participação, enquanto instituições, nos fatos correlatos e preliminares à tentativa de golpe de estado do dia 8 de janeiro de 2023.
Nesta quarta-feira, 23, o presidente da CPMI do 8/1, Arthur Maia, reuniu-se com o comandante do Exército, general Tomás Paiva, no Forte Apache, e saiu de lá dizendo que a CPMI precisa preservar as “instituições democráticas” e separar atitudes isoladas de “alguns militares” do comportamento de toda a corporação. No mesmo dia, José Múcio se esmerou em uma mise-en-scène de reuniões, ofícios e apelos para que a Polícia Federal informe à Defesa os nomes dos militares que estiveram com Delgatti, a fim de “separar o joio do trigo”. Também nesta quarta, o próprio ministro da Justiça, Flavio Dino, saindo de uma reunião com Múcio, disse que “pessoas que eventualmente sejam militares é que serão em algum momento julgadas”.
É compreensível que quem não gosta de usar o retrovisor, com todos os riscos inerentes a esta imprudência no trânsito, esteja sobressaltado a ponto de desencadear, à luz do dia, uma verdadeira Operação Anistia, que está nas ruas ao ritmo de uma cantiga de José Múcio que não chegou a entrar no seu álbum recém-lançado no Spotify: “não foi o Exército, foram figuras”.
O motivo é que a presença de Walter Delgatti no Ministério da Defesa arrisca trazer de volta à baila um ponto central da tentativa de golpe de Estado que o Brasil viveu e que já estava quase todo debaixo do tapete, quase, por pressão dos militares e pelo deixar-se pressionar do governo Lula e do Supremo Tribunal Federal. Trata-se da atuação, no segundo semestre do ano passado, da assim chamada Equipe das Forças Armadas de Fiscalização do Sistema Eletrônico de Votação (EFASEV), criada no dia 2 de agosto de 2022 por meio de uma portaria do Ministério da Defesa assinada pelo general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, na época o titular da pasta.
Até entre os da política e da mídia mais dados a apaziguamentos e contemporizações, até entre eles é consenso que a EFASEV foi nada menos que um destacamento golpista ao qual foi dada a missão de bombardear incansável e implacavelmente o sistema brasileiro de votação eletrônica, a fim de açular revolta social e criar as condições, por exemplo, para a decretação de um “Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral”, visando “garantir o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022”, conforme consta na minuta do golpe encontrada com Anderson Torres. O Estado de Defesa no TSE não veio, mas veio o 8/1.
Não há uma única idosa em Taubaté que tenha acreditado no “espírito colaborativo com o TSE”, como dizia o general Paulo Sérgio, referindo-se ao trabalho da EFASEV.
Os bombardeios da EFASEV começaram desde antes da formalização da equipe. No dia 14 de julho, a menos de três meses do primeiro turno, um coronel da ativa do Exército brasileiro foi levado até o Senado pelo general Paulo Sérgio para discorrer sobre a possibilidade de que as urnas eletrônicas brasileiras estivessem sabotadas. Naquele dia, o coronel Marcelo Nogueira de Sousa disse a senadores que “é possível que um código malicioso tenha sido inserido na urna e fique lá latente esperando algum tipo de acionamento”. No dia 2 de agosto, Marcelo Nogueira de Sousa foi nomeado chefe da EFASEV.
Ao mesmo tempo, antes de a EFASEV ser quase completamente esquecida, prevalecia a “narrativa” segundo a qual a criação e a atuação da equipe no segundo semestre de 2022 teria sido uma iniciativa isolada no âmbito do Ministério da Defesa, fruto de pressões políticas de Bolsonaro sobre o general Paulo Sérgio e tomada à revelia das altas cúpulas militares, ainda que a EFASEV fosse composta por outros nove militares das três Forças, além do coronel Marcelo Sousa, indicados equitativamente: três do Exército, três da Marinha e três da Aeronáutica.
Segundo esta “narrativa”, a EFASEV teria sido uma espécie de operação clandestina bancada pelo general Paulo Sérgio para satisfazer o golpismo de Bolsonaro, exclusivamente o de Bolsonaro. Não é, porém, o que mostram documentos do período.
O primeiro deles é a própria portaria da Defesa que formalizou a EFASEV. Nela, consignou-se que a equipe ficaria “diretamente vinculada ao Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas – EMCFA” e que “o EMCFA deverá, em coordenação com os Comandos das Forças Singulares [Exército, Marinha e Aeronáutica], expedir diretrizes para os trabalhos da EFASEV”, além de “assessorar o Ministro de Estado da Defesa”.

O vínculo de funcionalidade da EFASEV com o EMCFA não apenas se deu de fato como já estava em prática antes mesmo da edição da portaria.
No dia 1º de agosto de 2022, menos de duas semanas após Jair Bolsonaro reunir embaixadores para tentar desqualificar o sistema brasileiro de votação eletrônica – e um dia antes da portaria que formalizou a EFASEV – , o general Paulo Sergio enviou um ofício ao então presidente do TSE, Edson Fachin, requisitando acesso aos dados das eleições de 2014 e 2018, justa e precisamente os processos eleitorais que Jair Bolsonaro havia acabado de indicar aos embaixadores como possivelmente fraudados.
O ofício enviado pelo general Paulo Sergio a Edson Fachin no dia 1º de agosto tinha praticamente a mesma redação de outro, interno, enviado quatro dias antes, em 28 de julho – 10 dias após a reunião com os embaixadores -, pelo coronel Marcelo Nogueira de Sousa ao chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, general Laerte de Souza Santos. No ofício original, Marcelo Nogueira de Sousa pedia ao general Laerte que reiterasse, junto ao TSE, as requisições de “subsídios técnicos” para a EFASEV e dizia que “as justificativas relativas aos subsídios técnicos estão elencadas no documento anexo a este expediente”.
Além do coronel Marcelo Nogueira de Sousa, o documento anexo ao qual o coronel se referia era assinado por outros três militares da EFASEV, mencionados desta maneira: “representante da Força Aérea Brasileira”, “representante do Exército Brasileiro” e “representante da Marinha do Brasil”.

No dia 8 de agosto, o “representante do Exército Brasileiro”, coronel Ricardo Sant’ana, foi descredenciado pelo TSE da “fiscalização” dos códigos-fonte do sistema brasileiro de votação por publicar notícias falsas a respeito do sistema eleitoral em suas redes sociais. Em sua reação virulenta ao descredenciamento do coronel Sant’ana, o Exército afirmou que o trabalho da EFASEV, “particularmente dos representantes do Exército Brasileiro”, era “eminentemente técnico e realizado de forma coletiva por seus integrantes, além de ser estritamente institucional”.
No dia 30 de setembro, horas antes do primeiro turno, o Exército Brasileiro divulgou nota oficial classificando como “desinformação que só contribui para a instabilidade do País” uma matéria publicada naquele dia no Estadão informando que o Alto Comando da força havia fechado questão por respeitar o resultado das urnas. Para ilustrar a nota, o Exército sobrepôs um aviso de “fake news” ao print do título da matéria do Estadão, que era este: “Alto-Comando do Exército diz que ‘quem ganhar leva’ a Presidência e se afasta de auditoria dos votos”.

Após as eleições, no dia 10 de novembro, a agência de checagem de fatos do Exército atacou outra vez, classificando de “fake news” a informação, então corrente na imprensa, de que os generais não se coadunavam com a ofensiva do Ministério da Defesa contra o sistema brasileiro de votação eletrônica. Sobre o relatório dos militares que lançou suspeitas sobre o processo eleitoral brasileiro, a nota dizia que “não há divergências entre o Comando do Exército e o Ministério da Defesa”, e que dizer isso era incorrer em “desinformação à sociedade”.

De fato, não havia divergências; havia endosso.
Em outubro, após o primeiro turno, Come Ananás teve acesso a um documento chamado “Plano de Trabalho da Equipe das Forças Armadas de Fiscalização do Sistema Eletrônico de Votação (EFASEV)”, datado do dia 8 de setembro.
O documento era timbrado pelo pelo Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Também no dia 30 de setembro, em um pedido de esclarecimento feito pelo Tribunal de Contas da União sobre como exatamente seria feita a “apuração paralela” dos militares no primeiro turno, o chefe da EFASEV, coronel Marcelo Nogueira de Sousa, disse que “o Plano de Trabalho foi formalmente submetido, pelo CEMCFA [Comando do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas], à aprovação pelos comandantes das Forças Armadas”.


O Plano de Trabalho da EFASEV, formalmente aprovado pelos comandantes das três Forças, previa a realização de análises para “identificar anomalias na execução do processo de votação” até o dia 5 de janeiro de 2023, “nas dependências da EMCFA”. Como as Forças Armadas do Brasil têm a transparência de um insulfilm com 5% de visibilidade, não se sabe se a “etapa 8” do Plano de Trabalho chegou a ser executada, com a “EFASEV e pessoal das FA” vasculhando “artefatos relacionados às urnas” a três dias do 8/1.

No dia 11 de novembro, as Forças Armadas divulgaram uma nota conjunta dizendo que, “acerca das manifestações” – as concentrações golpistas na frente dos seus quartéis -, elas reafirmavam seu “compromisso irrestrito e inabalável com o povo brasileiro” e sua “tradição” de “moderadoras nos mais importantes momentos da nossa história”. Com massas de “patriotas” buliçosos pedindo ajuda aos militares contra o resultado de uma eleição que acreditavam fraudadas pelo TSE e direcionadas por Alexandre de Moraes, a nota citou “possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos” e chamou “as autoridades da República” à “estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências”.
O resto da história é bastante conhecido, inclusive o fato de que o Exército moveu soldados e blindados para bloquear o acesso de viaturas da Polícia Militar do Distrito Federal ao acampamento golpista na frente do Forte Apache na noite do 8/1, após o ataque à Praça dos Três Poderes. Um detalhe: naquela adiantado no dia 8, por força do decreto de intervenção na Segurança Pública do DF assinado pelo presidente Lula, a PMDF estava sob comando do Governo Federal. O Exército, pelo visto, não.
Ou talvez fossem apenas “pessoas que eventualmente sejam militares” barrando o passo do poder civil.
Seria engraçado, se não fosse trágico. Enquanto as investigações da Polícia Federal e da CPMI sobre a intentona golpista do 8 de janeiro revelam que sobra batom nas cuecas,nas fardas, nos quepes, botinas e gandolas dos militares, há todo um esforço para que eles escapem impunes (os generais, em especial). Pelo que se vê, planeja-se sacrificar alguns oficiais como “bodes expiatórios”. Tanto a relatora quanto o presidente da CPMI deram declarações recentes que isentam de responsabilidades as Forças Armadas e seus generais, denotando que há um movimento para que os crimes sejam tratados como atos individuais, totalmente desvinculados das corporações militares e das suas cadeias de comando. Pizza com massa verde-oliva.
Já o Ministro da Defesa, que deveria personificar o controle civil sobre a caserna, se comporta como um porta-voz dos comandantes militares – em tese seus subordinados – e tenta emplacar versões nada factíveis sobre os acontecimentos. Como um Nero que toca lira enquanto Roma arde em chamas, o ministro grava um álbum de canções românticas e divulga o seu lançamento nas redes de streaming em plena crise de credibilidade da caserna…. continua em bananasnews.noblogs.org