Pelo menos quatro membros da comitiva de Jair Bolsonaro na Rússia não voltaram direto para o Brasil após o fim da viagem oficial. Um documento do Ministério da Defesa e as agendas de altos funcionários da pasta mostram que um civil e três militares da Secretaria de Produtos do ministério manobraram para Abu Dhabi a fim de reunirem-se em um “grupo de trabalho” com representantes do Grupo Edge, conglomerado estatal dos Emirados Árabes Unidos criado em 2019 que é o dono da companhia DarkMatter.
Fundada em 2014 como uma empresa de “cibersegurança”, e desde 2019 sob o guarda-chuva do Grupo Edge, a DarkMatter é acusada de servir de fachada para um projeto de hackeamento, espionagem, identificação, difamação e repressão de opositores do regime autoritário dos Emirados Árabes – o “Projeto Raven”; para prejudicar adversários comerciais dos Emirados e para “ajudar” esforços persecutórios de aliados estratégicos, como a Arábia Saudita. A empresa está sendo investigada pelo FBI por espionagem de cidadãos estadunidenses.
O fundador da DarkMatter, Faisal Al Bannai, era até semanas atrás o executivo-chefe do Grupo Edge. No último 31 de janeiro, o Grupo Edge anunciou um novo CEO porque Faisal Al Bannai foi promovido a presidente do conselho de administração do conglomerado.
Há pouco mais de um mês, no dia 17 de janeiro, uma reportagem de Jamil Chade e Lucas Valença no UOL revelou que um integrante do gabinete do ódio do Palácio do Planalto teve tratativas com um representante da DarkMatter no dia 14 de novembro do ano passado, na feira aeroespacial Dubai AirShow, durante a última viagem internacional de Bolsonaro, aos Emirados Árabes, antes do giro Rússia-Hungria.
Naquela feita, Eduardo Bolsonaro disse que seu pai e o príncipe herdeiro Mohammed bin Zayed Al Nahyan, conhecido como MbZ, “mais pareciam bons amigos se revendo”. Conversa para dromedário dormir. É que o fundo Mubadala, controlado pelo sheik, vem fazendo a festa no “novo Brasil”: desde que Bolsonaro subiu a rampa do Planalto, o fundo comprou a refinaria baiana Landulpho Alves, abocanhou o Metrô Rio, acaba de concluir a captação do seu primeiro fundo no Brasil, o Brazil Special Opportunities Fund I (US$ 332 milhões) e pode ser em breve o novo dono da Braskem.
No ano passado, o Mubadala investiu US$ 75 milhões no Telegram. Criado por dois irmãos russos em 2013, o aplicativo de mensagens preferido dos bolsonaristas, e “foragido” do TSE, tem sua sede global justamente em Dubai.
As reuniões do grupo de trabalho e a reunião com o gabinete do ódio
No último 4 de fevereiro, uma portaria do Ministério da Defesa designou quatro funcionários da pasta para acompanharem o ministro Walter Souza Braga Netto à Rússia e depois para participarem, em Abu Dhabi, nos dias 19 e 20, de uma “2ª Reunião do Grupo de Trabalho Conjunto estabelecido entre o Ministério da Defesa do Brasil e o Grupo Edge”, antes de visitarem a 4ª edição da Exposição e Conferência de Sistemas Não Tripulados, a UMEX 2022, que aconteceu entre os dias 21 e 23 também em Abu Dhabi.

Foram designados para a “missão de natureza militar” o Secretário de Produtos de Defesa (SEPROD), Marcos Degaut; um assistente técnico militar da SEPROD, capitão de corveta Vagner Piedade Garcia de Araújo; o diretor do Departamento de Promoção Comercial do ministério (DEPCOM), brigadeiro do ar José Ricardo de Meneses Rocha; e o coordenador do DEPCOM, capitão de mar e guerra Pedro Oliveira de Sá.
As agendas do secretário Marcos Degaut e do brigadeiro do ar José Ricardo Rocha confirmam que os dois estiveram em Abu Dhabi de 18 de fevereiro até esta quarta-feira, 23. Funcionários de escalão mais baixo do Ministério da Defesa, Vagner Piedade Garcia de Araújo e Pedro Oliveira de Sá não têm agendas divulgadas.
Sobre a “2ª Reunião do Grupo de Trabalho Conjunto” entre integrantes do Ministério da Defesa e representantes o Grupo Edge, Come Ananás não encontrou registros públicos claros da primeira – da primeira reunião. Solicitamos ao ministério a confirmação de que ela ocorreu três semanas antes de um integrante do gabinete do ódio se reunir com um representante da DarkMatter em Abu Dhabi e a exatamente um ano das eleições de 2022.
No dia 25 de outubro do ano passado, uma delegação do grupo Edge, acompanhada de Marcos Degaut, visitou o Estado Maior do Exército para “discutir necessidades atuais” da força terrestre. Outra agenda oficial, a do general do Exército Laerte de Souza Santos, mostra que no dia seguinte, 26 de outubro, a delegação do Grupo Edge esteve também com o Estado Maior Conjunto das Forças Armadas.
Come Ananás perguntou ainda à Defesa qual é a pauta do grupo de trabalho conjunto que o ministério mantém com o Grupo Edge. Até a publicação desta matéria, o ministério ainda não tinha retornado o contato.
Jair Bolsonaro ameaça quase que diuturnamente as eleições de 2022. Nesta rotina, faz questão de pontuar que é ele o comandante supremo das Forças Armadas. O candidato à reeleição pode ter como vice o atual ministro da Defesa, Braga Netto, que há menos de um ano mandou avisar ao presidente da Câmara dos Deputados que só haveria eleições com voto impresso.
O voto impresso foi derrubado no Congresso Nacional. Braga Netto não é propriamente a mulher de Cesar. Mas a aproximação do Ministério da Defesa com os donos da DarkMatter, seja qual for a pauta oficial, no mínimo não ajuda as FFAA a, digamos, parecerem honestas para o processo eleitoral que se avizinha.
De ponta a ponta
Em entrevista ao Come Ananás, a diretora de segurança cibernética da Electronic Frontier Foundation (EFF) e consultora técnica da Freedom of the Press Foundation, Eva Galperin, disse que os Emirados Árabes Unidos financiaram a DarkMatter e a usaram para ajudar seus aliados a alcançarem seus objetivos.
Eva Galperin atuou em um dos mais conhecidos casos envolvendo a DarkMatter, o da ativista saudita Loujain al-Hathloul, que foi presa em 2018, torturada com eletrochoques e afogamentos e padeceu até fevereiro de 2021 na masmorras do regime de Riad. Quando estava presa, guardas que a ameaçaram de estupro sabiam de detalhes da sua vida privada que foram roubados de seu celular pelo spyware da DarkMatter. A EFF ajudou Loujain al-Hathloul a mover um processo contra a empresa.
Segundo Eva, até onde se tem conhecimento a DarkMatter teve como alvos jornalistas e ativistas, a pedidos de governos, infectando os dispositivos das vítimas com malware de vigilância e extraindo dados desses dispositivos. Esses dados, segundo ela, incluem localizações, senhas, fotos, e-mails e comunicações criptografadas de ponta a ponta.
Eva Galperin explicou ainda ao Come Ananás uma diferença fundamental entre o Pegasus, software espião do israelense NSO Group que Carlos Bolsonaro tentou viabilizar para a Polícia Federal, via licitação, e a DarkMatter: a DarkMatter não apenas forneceu as ferramentas a governos; a própria empresa supervisionou o programa de vigilância:
“A NSO vende as ferramentas para os governos. A DarkMatter implantou suas ferramentas para os governos. Então, não há dúvida de que eles sabiam quem estavam mirando. Ex-funcionários da NSO que foram trabalhar no Projeto Raven dizem que ficaram desconfortáveis quando foram encarregados de atacar os americanos, mas fizeram isso mesmo assim”.
‘Combinação de soluções’, ‘maneiras não convencionais’
Recentemente, um dos mais importantes sites do mundo que se debruçam sobre o setor de inteligência apontou que a desgastada “equipe de ciberataques de Mohamed bin Zayed” – a DarkMatter – parece ter uma sucessora: a Beacon Red, outra subsidiária do Grupo Edge.
De fato, na lista atualizada de subsidiárias de “guerra eletrônica e inteligência” do grupo Edge quem aparece é a Beacon Red, ao lado da Signal4L, que é “uma combinação de soluções” como armas eletromagnéticas e de radiofrequência para “interferir, perturbar, interromper ou anular” comunicações inimigas.
Já a suposta sucessora da DarkMatter, a Beacon Red, apresenta-se assim em seu site oficial: “somos solucionadores de problemas que enfrentam questões de segurança nacional de maneiras não convencionais”.
“Maneiras não convencionais”. Pode chamar também de guerra híbrida.
Alguém que assista distraído ao vídeo institucional da Beacon Red pode confundi-lo com o trailer do próximo 007, com um Bond de Kandoora e Gutrah sucedendo Daniel Craig:
Come Ananás identificou sete brasileiros atualmente a serviço da Beacon Red. Um deles é “Executive Director” da empresa e é oriundo da DarkMatter, onde trabalhou entre 2015 e 2018. Outros três também trabalharam da DarkMatter e dois são ex-alunos do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA).
Dos sete, três trabalham para a Beacon Red no Brasil.
Há o caso de um funcionário da Beacon Red que está lotado em São José dos Campos e que, após nove anos a serviço da Embraer e de um PhD no ITA, pulou para o Grupo Edge, onde desde novembro de 2019 é “Senior Aerospace Consultant”.
Em São José dos Campos fica o Parque Tecnológico da Embraer (PqTec). O Grupo Edge, por meio de outra de suas subsidiárias, a Halcon, tem um acordo para fornecimento de mísseis “padrão Otan” para o caça A-29 Super Tucano, da Embraer.
Em novembro do ano passado, após as visitas ao Estado Maior do Exército e ao Estado Maior Conjunto das Forças Armadas, em Brasília, representantes do Grupo Edge estiverem no PqTec, em São José, onde assistiram a uma apresentação da UCSGRAPHENE, empresa que faz parte do Parque de Ciência, Tecnologia e Inovação da Universidade de Caxias do Sul e que gera “grafeno de alta qualidade para a prestação de serviços tecnológicos inovadores a setores portadores de futuro”.
Grupo Trump-Emirados
Além da interferência russa nas eleições de 2016 nos EUA, é amplamente documentada a ação de um “grupo Trump-Emirados” para a vitória de Donald Trump naquele ano sobre Hillary Clinton.
Em janeiro de 2017, uma semana antes da posse de Trump, aconteceu um encontro secreto entre um emissário de Trump e um emissário de Vladimir Putin nas Ilhas Seychelles, no Oceano Índico. O encontro foi revelado em abril de 2017 pelo Washington Post. Quem organizou o encontro foi o xeique MbZ, o “bom amigo” de Jair Bolsonaro.
Os Emirados Árabes Unidos interferiram pró-Trump em 2016 movidos a interesses geopolíticos e comerciais, entre eles a vontade de isolar o Catar, rival dos Emirados no Oriente Médio.
Acerca disso, e sobre o contato do gabinete do ódio com a DarkMatter, Come Ananás publicou no último 18 de janeiro o artigo “O Carluxogate, o ‘grupo Trump-Emirados’ e as armas de Bolsonaro para 2022”.
Nesta quarta-feira, 23, o ministro do Supremo Alexandre de Moraes deu andamento a um pedido de investigação sobre o que exatamente Carlos Bolsonaro estava fazendo na comitiva de Jair Bolsonaro que viajou à Rússia, além de tentar evitar a terceira guerra mundial…
O pedido, feito no âmbito do inquérito das milícias digitais, vale também para o que fazia na comitiva o assessor de Bolsonaro Tercio Arnaud, apontado como líder do gabinete do ódio. Arnaud viajou antes de Bolsonaro para a Rússia, em um “grupo precursor”. No site da Presidência da República, a agenda oficial de Tercio Arnaud, que desde janeiro de 2019 nunca deixou de ser informada, parou de ser atualizada no dia 2 de fevereiro.
Mas é como diz o provérbio: quem é vivo sempre aparece.
Às vezes, surgindo das sombras.