Nas duas páginas de justificação do requerimento para a criação da CPI do MST, apresentado pelo deputado federal Tenente-Coronel Zucco em nome da bancada ruralista, aparece nada menos que 15 vezes a palavra “propriedade”. A palavra “Constituição”, uma – para ressaltar o direito… à propriedade.

No requerimento do deputado Zucco não há uma palavra sequer, por óbvio, sobre a formação do latifúndio e sobre as contradições que ele engendra na sociedade brasileira. Sobre isso, algum dos raríssimos deputados ou senadores que integram a CPI do MST e não integram a bancada ruralista poderia ter causado dissenso na primeira reunião da comissão citando a homilia sobre São Lucas da Patrologia grega de Migne:

“A quem prejudico, dizes, guardando o que é meu? Dize-me: a que chamas de ‘teu’? De que fonte recebeste o que está a serviço de tua vida? Os ricos são como alguém que após reservar um lugar num teatro impedisse a entrada de outros, por considerar como seu bem próprio o que está destinado ao uso comum de todos. Com efeito, porque foram os primeiros a possuir os bens comuns, consideram-nos, em virtude dessa anterioridade de apropriação, como bens que lhes pertencem”.

Este excerto daquela homilia abre o número 10 dos célebres Cadernos do Povo Brasileiro, da Editora Civilização Brasileira. O número foi dedicado à reforma agrária e foi escrito pelo jornalista gaúcho Paulo Schilling (1925-2012), o “padrinho dos sem-terra” que foi um importante colaborador de Leonel de Moura Brizola e um dos fundadores do PT.

O livrinho de Paulo Schilling, que é sobre a necessidade de uma reforma agrária radical como condição incontornável para o desenvolvimento do Brasil, está fazendo 60 anos. Foi lançado em 1963, às vésperas do golpe que sustou o à época candente debate político sobre a possibilidade de uma reforma agrária popular e democrática no país. No mesmo ano, a voz de Leonel Brizola retiniu no Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (Caco) da Faculdade Nacional de Direito da velha Universidade do Brasil, hoje UFRJ: “os carcereiros não rompem cadeias”.

Sesmarias, latifúndios

Tenente-Coronel Zucco, abaixe as orelhas, porque Paulo Schilling consagrou aquele número dos Cadernos do Povo Brasileiro à memória do Tenente-General Francisco José de Souza Soares e Andrea, um antigo presidente da Província do Rio Grande que no dia 1º de junho de 1849 encaminhou um relatório ao Poder Legislativo provincial pedindo medidas de reforma agrária, sob a justificativa de fazer despedaçar a justificação do requerimento para a criação da CPI do MST:

“Um dos grandes obstáculos que se tem oposto nesta Província ao desenvolvimento da Agricultura, e mesmo ao da População – escreveu o Tenente-Coronel -, é a existência de grandes fazendas, ou antes de grandes desertos, cujos donos cuidando só, e mal, da criação, têm o direito de repelir de seus campos as famílias desvalidas que não têm aonde se conservar de pé”.

“O fazendeiro que possui uma sesmaria, tem por sua conta um deserto de três léguas quadradas. Se possui duas, três ou mais sesmarias, é senhor de 6, 9 ou mais léguas de deserto, que ninguém mais habitará. Uns poucos fazendeiros sucessivos fazem deserta uma porção de terreno maior do que a ocupada por alguns pequenos estados da Alemanha, e as famílias pobres andam errantes a pedir abrigo a um e a outro, sem que alguém lhes valha. Deste modo nunca se desenvolverá a população da Província”, consignou ainda o Tenente-General.

Às populações tributárias do gado

A quem veste o boné das lutas dos povos do campo, mas reluta em vestir efetivamente a camisa, desconfiança. O MST é a Constituição e os titubeantes incorrigíveis não leram outra obra de Paulo Schilling: “Como se coloca a direita no poder”.

Aos que instrumentalizam os institutos da República para criminalizar as justas lutas dos povos do campo pela efetivação do mandamento constitucional da função social da terra, a estes, ódio e nojo, como à Ditadura.

Paulo Schilling, 60 anos atrás, dedicou seu precioso livrinho “aos camponeses sem terra de todo o Brasil, aos ‘servos da gleba’; às ‘populações tributárias do gado’, aos parceiros, aos posseiros, aos assalariados rurais; aos seus mártires e líderes, a todos que lutam efetivamente por uma Reforma Agrária progressista”.

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